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Ghibli
Foto: reprodução/amino

A problemática por trás da trend do Studio Ghibli

A busca por perfeição pode acabar podando a criatividade e tirando um pouco do encanto da arte

Texto por Ana Caroline e Luana Esperatti

A ascensão da inteligência artificial na criação de textos, imagens e até músicas tem sido celebrada como um avanço tecnológico revolucionário. Ferramentas como ChatGPT e geradores de imagens prometem acesso rápido e fácil à produção artística, eliminando barreiras e democratizando a criatividade. 

No entanto, essa aparente revolução esconde um perigo sutil: a padronização do pensamento criativo e a desvalorização do trabalho humano. Em uma busca incessante por eficiência e perfeição, a arte se torna um produto automatizado, desprovido da essência imprevisível e subjetiva que caracteriza a verdadeira criatividade. 

Estamos presenciando uma era em que a arte não é mais fruto da emoção e da experiência, mas sim um reflexo calculado de padrões algorítmicos. Isso levanta uma questão crucial: estamos matando a criatividade ao tentar reproduzi-la artificialmente?

A falsa promessa da IA: criatividade sem esforço?

Nos últimos anos, a inteligência artificial se tornou a queridinha da internet quando o assunto é criação de conteúdo. Com poucos cliques e sem nenhum esforço, qualquer pessoa pode gerar um texto bem escrito ou uma ilustração no estilo de um artista famoso. Parece mágico, mas essa facilidade tem um preço alto: a morte do pensamento criativo e a substituição de artistas reais por um algoritmo que apenas recicla o que já existe.

O que antes exigia anos de prática e um olhar artístico único agora virou um processo instantâneo e impessoal. Ferramentas como ChatGPT, Midjourney e Stable Diffusion estão transformando arte e escrita em um produto descartável, feito para satisfazer o imediatismo das redes sociais. Mas será que vale a pena trocar criatividade por conveniência?

Ing Lee, artista visual, quadrinista e pesquisadora coreano-brasileira, alerta: “A IA precisa ser alimentada para continuar crescendo e gerando mais imagens, e o questionamento central é de onde vem esse banco de dados… Vários artigos e matérias atestam que esses modelos são treinados com conteúdos sem consentimento de seus autores, desde ilustrações, animações, músicas, livros e assim vai. As bases da IA são o plágio e trazem consigo práticas que beiram ao neocolonialismo, apropriando-se e destruindo tudo que há em seu caminho.”

O pior é que essa tendência está tornando as pessoas mais preguiçosas intelectualmente. Em vez de se esforçarem para aprender a desenhar ou aprimorar sua escrita, muitos simplesmente jogam uma ideia em um gerador de IA e aceitam o que vier. E aí está o grande problema: ao eliminar o processo criativo, estamos perdendo o que nos torna humanos.

A desvalorização dos artistas: “por que pagar se a IA faz de graça?”

Um dos efeitos mais cruéis dessa nova onda de inteligência artificial é a desvalorização do trabalho dos artistas. Quando qualquer um pode gerar uma “obra de arte” em segundos, muitos começam a questionar por que deveriam pagar por um trabalho feito à mão.

Isso já está acontecendo. Ilustradores estão perdendo oportunidades de trabalho porque clientes preferem uma imagem gerada por IA. Escritores veem seus textos sendo substituídos por respostas genéricas de um chatbot. A arte está se tornando um produto industrializado, sem alma e sem identidade.

Pior ainda, muitas dessas ferramentas são treinadas em obras de artistas reais, sem consentimento ou compensação. Ou seja, a IA não está criando nada novo — ela está apenas copiando e colando pedaços do trabalho alheio. 

O caso da atriz Scarlett Johansson ilustra bem essa problemática: após recusar uma proposta para conceder sua voz ao ChatGPT, a empresa gerou uma voz que remetia muito à sua. Ing Lee destaca: “Isso é de uma violência muito grande à autonomia, uma afronta diante de criadores que sempre se opuseram a esses tipos de tecnologia — assim como o Hayao Miyazaki já havia se posicionado em um de seus documentários, alegando que a inteligência artificial é uma afronta à vida.”

A IA tem substituído e precarizado vários setores criativos. “Meus colegas estão em absoluto pânico vendo suas demandas de trabalho diminuírem vertiginosamente e tendo até que mudar de área. Nossa classe artística já lidava com a desvalorização sistêmica de nosso labor, mas, com a IA, isso se intensificou assustadoramente a ponto das novas gerações se sentirem impelidas a abandonarem a arte por não verem mais um futuro onde possam trabalhar através de suas criações”, denuncia a artista.

A trend Ghibli e a superficialidade da arte feita por IA

A mais recente atualização criada pela OpenAI permite que os usuários gerem imagens, seguindo tudo o que o sistema já aprendeu na internet. Imagens de diferentes estilos são criadas após um simples comando, algo que rapidamente se tornou viral nas redes sociais, fazendo com que a plataforma ganhasse cerca de 1 milhão de novos usuários.

O estilo que mais tem sido replicado por aqueles que colocam suas fotos no sistema é do Studio Ghibli, algo que se transformou em uma trend, onde milhares de fotos já existentes são convertidas aos traços do renomado estúdio japonês.

Ghibli
Foto: reprodução/diario do nordeste

Hayao Miyazaki, cofundador do Studio Ghibli, não se pronunciou após tudo isso, mas já falava publicamente há anos sobre a IA, mesmo antes do ChatGPT existir,  demonstrando não ter intenção de utilizá-la em suas produções. Ao falar sobre animações 3D produzidas pela inteligência artificial em um documentário de 2016, Miyazaki disse:

“Não consigo assistir a essas coisas e achar interessante […]. Quem cria essas coisas não tem a mínima ideia do que é a dor. Estou completamente enojado. Se você realmente quer fazer coisas assustadoras, pode ir em frente e fazer. Eu nunca desejaria incorporar essa tecnologia ao meu trabalho. Sinto fortemente que isso é um insulto à própria vida.”

O uso da IA para reprodução de trabalhos criativos vem crescendo juntamente com a popularização dessas ferramentas, algo que tem frustrado cada vez mais profissionais de artes visuais, assim como escritores, músicos e atores. É o que comenta a ilustradora Alexia Bonani

“Por um lado, muitas pessoas podem achar que essas ferramentas de IA estão popularizando e democratizando o acesso à arte, mas, para existir a arte, demanda a existência de um artista, alguém que possa transformar suas ideias com um olhar único para o mundo. Quando esses apps geram essas coisas, isso é perdido. Me sinto frustrada porque, desde que isso começou, é uma tecla que eu e muitos artistas batemos. Não estamos falando apenas da substituição da mão de obra artística, mas também sobre propriedade intelectual”.

Não podemos transferir essa responsabilidade para as pessoas que estão participando, e sim lembrar que são as empresas detentoras dessas ferramentas [(as responsáveis]”, diz também a ilustradora. Empresas como a OpenAI vêm enfrentando diversos processos por direitos autorais, além de inúmeras críticas. 

Ghibli
Foto: reprodução/revista o grito

Em 2024, mais de 10 mil profissionais entre atores e músicos assinaram uma carta aberta criticando o uso de obras criativas para treinar modelos de IA sem a devida autorização, violando os direitos autorais das obras, algo que também aconteceu com veículos de comunicação, como o New York Times, pelo mesmo motivo. As plataformas negaram as alegações, e, sobre isso, o ilustrador e professor dos cursos de comunicação da Universidade Católica de Brasília (UCB), Daniel Arcos, declara: 

“O debate ajuda a moldar o futuro, e o levante dos artistas lança um olhar, novamente, para a lei. Imagino um futuro onde a legislação seja a nossa principal proteção e que ela realmente funcione […]. Os artistas precisam ficar atentos. É comum no meio artístico a criação de obras inspiradas em temas e personagens de grandes empresas, como Marvel, DC Comics e Studio Ghibli. No entanto, de acordo com a Lei 9.610/98, essa prática não é permitida. Muitas dessas empresas costumam fazer “vista grossa”, intervindo apenas quando a obra do artista adquire características de produção em larga escala ou uso comercial significativo”.

As animações do Ghibli são conhecidas por sua riqueza de detalhes, pela expressividade dos personagens e pela sensibilidade emocional que só artistas de verdade conseguem transmitir. Mas, quando uma IA tenta recriar esse estilo, o resultado é uma casca vazia — algo bonito de longe, mas sem a alma e a profundidade das obras originais.

Ghibli
Foto: reprodução/ el output

As pessoas pedem essas imagens porque querem se ver dentro desse universo mágico, mas, no final, recebem um produto artificial e sem significado real. E o pior: ao invés de valorizar artistas que realmente dominam esse estilo, preferem um atalho rápido e sem esforço.

Essa tendência não só banaliza o trabalho de ilustradores reais, como também incentiva uma mentalidade de “tudo pronto e mastigado”, onde ninguém precisa desenvolver suas próprias habilidades ou criatividade.

Efeitos no audiovisual

O estilo de uma obra artística é sua identidade, algo que é construído durante anos. O Studio Ghibli, por exemplo, envolve um processo rigoroso e artesanal, com um foco enorme nos detalhes de cada produção. Cada história é desenvolvida diretamente nos storyboards, onde cena por cena é desenhada e, assim, a narrativa é montada visualmente.

Dessa forma, nasceram filmes aclamados pela crítica e pelo público, como A Viagem de Chihiro (2001), Meu Amigo Totoro (1988), O Castelo Animado (2004), Princesa Mononoke (1997) e um dos mais recentes, O Menino e a Garça (2023). O estúdio preserva as técnicas de animação tradicionais e a maior parte da produção é feita sem recursos como CGI, processo que demora meses ou até anos para ser finalizado.

Levando esse assunto também para o audiovisual, polêmicas recentes envolveram a inteligência artificial em filmes indicados ao Oscar deste ano. Títulos como Emília Pérez (2024) e O Brutalista (2024) receberam diversas críticas por usarem o recurso no tratamento das vozes dos atores, com o intuito de aperfeiçoar o sotaque ou a voz de determinados personagens, além de outros elementos. 

Ghibli
Foto: reprodução/cineweek

Sobre o assunto, profissionais do meio possuem opiniões diversas. Aqui também podemos ressaltar que as atualizações do ChatGPT permitem a reprodução de trailers utilizando estéticas de outras produções.

O cineasta Victor Buzzo expressa uma visão crítica sobre o impacto da inteligência artificial no setor:

“Eu acho que a inteligência artificial pode até ajudar, mas entre ajudar e atrapalhar, acho que ela mais atrapalha. Para mim, a parte em que realmente contribui é na pesquisa. Por exemplo, se estivermos fazendo um filme sobre alguém que já morreu ou uma figura notável do passado, ela pode ser útil nesse sentido”, opina.

Por outro lado, onde ela atrapalha é na criação de imagens que não existem. Agora, com essa polêmica do estúdio Ghibli, onde qualquer foto pode virar uma animação, vemos um trabalho que, antes, era feito manualmente por uma única pessoa, que dedicava muito tempo à pesquisa e ao desenvolvimento da sua arte. Isso deveria ser mais respeitado. Nesses casos, a inteligência artificial não só atrapalha, mas também desrespeita o artista.”

Gabriel Nakanishi, produtor audiovisual e cofundador da CRIAmov, tem uma perspectiva mais aberta sobre o uso da IA no setor:

“Acredito que o impacto desse tipo de tecnologia para os profissionais da área (audiovisual) é sim relevante, mas enxergo com bons olhos o movimento. Pois a IA precisa de um comando para funcionar, e o bom profissional será aquele que pensará bons prompts e usará a tecnologia a seu favor, ou melhor, a favor do mercado e da sociedade”.

O futuro das atualizações das plataformas de inteligência artificial é imprevisível, mas muitas pessoas enxergam como inevitável sua entrada definitiva em diversas profissões. Sobre essa inserção, Alexia deseja novas regulamentações:

“Não é justo que anos de estudo e trabalho sejam usurpados. Nós, enquanto artistas independentes, nos vemos forçados a postar na internet para alçar novas oportunidades e não temos o direito de escolher se nossas imagens serão usadas para alimentar esses sistemas ou não. A longo prazo, acredito que não há como fugir, então lutamos pela regulamentação dessas ferramentas, e, no fundo, gosto de acreditar que arte sem alma não se sustenta”, finaliza a ilustradora.

E, enquanto essa regulamentação não chega, Daniel oferece algumas dicas aos profissionais:

“Minha dica para todos os artistas é registrar as suas obras e seu estilo. O registro pode ser feito, por exemplo, no site da Câmara Brasileira do Livro, onde é possível catalogar obras, obter ISBNs e fichas catalográficas, entre outros serviços. Já o registro de estilo é mais desafiador, mas quem possui uma produção extensa pode comprovar autoria por meio de portfólios, redes sociais ou trabalhos realizados para pessoas e empresas”, recomenda o professor de comunicação.

Pessoas não são substituíveis: a IA deve servir, não tomar o lugar

A tecnologia deve ser uma ferramenta para potencializar o talento humano, não para eliminá-lo. A IA pode ser útil em diversas áreas, mas o problema começa quando ela passa de auxiliar a substituta. Criatividade não é só o resultado final — é o processo, a emoção, a experiência.

A ilustradora Ing Lee ressalta: “A arte sempre foi democrática. É possível criar usando papel, caneta, tinta, argila, câmeras ou até mesmo lixo, mofo e materiais totalmente impensáveis enquanto materiais artísticos. O que não é democrático é o acesso a ela, e não será a IA que irá possibilitar isto. Mas sim políticas de incentivo à cultura, venda de materiais artísticos mais acessíveis, ensino de arte gratuito e de qualidade, mais museus e exposições de livre entrada, incentivos para a população ler e assistir mais filmes… Para que o caminho da arte ainda possa ser a escolha para as pessoas que queiram viver de suas criações, e não apenas serem substituídas por máquinas incapazes de traduzir a alma e a subjetividade inerentemente humana.”

Antes de pedir para uma IA “fazer arte” por você, pergunte-se: será que queremos um mundo onde a criatividade morreu e tudo é apenas um reflexo genérico do que já existia? Ou será que ainda vale a pena valorizar o que nos torna verdadeiramente humanos?

 

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Texto revisado por Bells Pontes

 

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