Primeiro volume da Série Napolitana, a obra A Amiga Genial tornou a autora italiana um fenômeno mundial
No ano de 2006 já fazia catorze anos da publicação de Amor Incômodo, primeiro livro de Elena Ferrante. Nessa altura, a autora já tinha um certo reconhecimento nacional, com boas impressões perante a crítica e o público. O que aconteceu, porém, a partir de outubro daquele ano, data de lançamento de A Amiga Genial, superou todas as expectativas: o livro se tornou best-seller em diversos países do mundo, sendo ovacionado pela crítica.
Primeiro livro de uma série de quatro, A Amiga Genial começa quando Elena Greco (conhecida como Lenu), uma senhora de 66 anos, descobre que sua amiga de infância, Rafaella Cerullo (tratada como Lina por todos e, Lila por Lenu) está desaparecida. Assim, num ato de vingança, Lenu escreve um retrospecto detalhado de suas vidas, que se desdobra em História do Novo Sobrenome, História de Quem Foge e de Quem Fica e História da Menina Perdida, impedindo que a amiga realize plenamente seu objetivo antigo de apagar-se sem deixar vestígios.
Centrada na relação intensa entre essas duas mulheres, nascidas num bairro periférico da Nápoles pós-guerra, a narrativa explora as dificuldades de ser mulher em meio à violência, ao machismo e à escassez material, de oportunidades e de afetos. Além disso, apresenta e discute criticamente a situação política caótica da Itália da segunda metade do século XX, com suas máfias fascistas e brigadas comunistas, entrelaçando esses dilemas nas vidas das personagens.
As duas amigas, melhores alunas da escola primária e leitoras ávidas, selam sua amizade em torno de um desejo comum de transgredir à realidade a elas imposta. No decorrer dos anos, seguem caminhos diferentes, se afastam e se aproximam, se machucam e se protegem. A narradora Lenu, racional e conciliadora, faz um ótimo contraponto com Lila, que tende para a impulsividade e a rebeldia por natureza. Tão complementares quanto divergentes, são demasiadamente humanas em sua complexidade, de forma que, mesmo ao suscitar julgamentos, provocam empatia.
A verdade em Ferrante
Se as capas de A Amiga Genial e seus consecutivos parecem reproduzir o estereótipo do que se convencionou chamar literatura feminina, em seu texto a autora subverte esse conceito, explorando, com personagens complexas, vivências femininas sinceras e diversas. Aborda a maternidade, as relações afetivas, as amizades, o trabalho, a sexualidade e o envelhecimento de forma não idealizada, nem estereotipada. Trazendo mulheres imperfeitas de sentimentos conflituosos, Ferrante realiza a proeza de, por meio da ficção, descrever o real de forma não panfletária, mas certamente feminista.
Com sua escrita assertiva e crua, Ferrante enlaça o leitor não só por meio do estilo folhetinesco e das viradas narrativas, mas especialmente por explorar temas e situações mundanas de forma extremamente sensível e incomodamente honesta.
Ao nos colocar diante de pessoas tão imperfeitas — a começar pela própria narradora — a autora transcreve o indizível da experiência humana e nos faz enxergar o que em nós muitas vezes não conseguimos acessar ou mesmo admitir que nos habita.
Em suas páginas, a italiana apresenta homens brutos, espancadores e abusadores, em contraponto com homens cultos que, por baixo de sua intelectualidade, também objetificam e manipulam as mulheres com as quais convivem. Essa oposição — e confluência — se expande por toda a obra: Lenu e Lila, a cidade e o bairro, o norte e o sul, o italiano culto e o dialeto. Todos são ora uma parte, ora o todo de uma relação ambivalente entre a ordem e o caos, que, como a autora não cessa de provar, tem momentos de atração e de repulsa, de oposição completa e de espelhamento.
A autora e a “febre Ferrante”
Elena Ferrante é um mistério. Desde o princípio de sua carreira como escritora, a italiana decidiu se manter no anonimato. Mesmo com o sucesso da Série Napolitana, a decisão de manter sua privacidade foi mantida, já que Ferrante acredita que um bom texto deve ser capaz de se sustentar por si só.
Há diversas especulações sobre sua identidade, inclusive seu gênero, porém, boa parte de seu público leitor feminino acredita que a verdade que a autora expõe no que escreve só poderia ser alcançada por alguém que se identifica como mulher. Verdade é que, mesmo que o anonimato da autora suscite curiosidade a seu respeito e sua obra, definitivamente sua popularidade é motivada por seu brilhante trabalho como escritora.
Prova disso é o fato de que, a partir do lançamento de A Amiga Genial, os outros volumes da Série Napolitana foram intensamente aguardados pelos fãs. Na Itália, vários leitores chegaram a madrugar em filas nas livrarias para serem os primeiros a acompanhar os destinos de Lenu e Lila.
Esse furor intenso, não tão usual no meio literário, especialmente quando se trata de livros destinados ao público adulto, chamou atenção e foi denominado de “febre Ferrante”. Retratada no documentário homônimo do diretor italiano Giacomo Durzi, disponível na Amazon Prime Video, a febre Ferrante é um gole de esperança para os amantes da literatura.
A adaptação para a TV
Após o sucesso mundial advindo dos quatro romances que constituem a série napolitana, lançados entre 2011 e 2014, a HBO fez uma adaptação da obra em formato de série televisiva. Chamada My Brilliant Friend, a série estreou em 2018 e conta, até então, com duas temporadas, que abordam os dois primeiros livros da série.
Muito elogiada por público e crítica, a adaptação é bem fiel ao Universo Ferrantiano. A emissora se empenhou tanto em reproduzir de forma digna a história que se preocupou que todos os atores principais da trama fossem fluentes no dialeto da periferia napolitana, que Lenu e Lila cresceram ouvindo e repetindo, bem diferente do italiano formal.
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*Crédito da foto de destaque: Reprodução.