Senso crítico, engajamento e representatividade começam nos bastidores
Quando falamos de representatividade trans preta no audiovisual, muitas vezes o foco recai apenas nas atuações que vemos nas telas. Mas, a verdadeira revolução começa nos bastidores, onde roteiristas, diretores e produtores trans pretos criam narrativas que rompem estereótipos e dão vida a histórias autênticas e poderosas.
É atrás das câmeras que surgem os roteiros que emocionam, as produções que ditam tendências e as visões que mudam o olhar do público sobre identidade e resistência. Nesta matéria, vamos celebrar as mentes criativas que estão reescrevendo o cinema e a televisão com coragem e propósito. Conheça algumas das figuras mais inspiradoras que estão transformando a indústria audiovisual — e fazendo história ao criar seus próprios espaços de pertencimento!
O legado das Wachowski e a visibilidade trans no cinema
O primeiro filme da trilogia Matrix foi lançado em 1999, mas continua revelando detalhes que vão além das icônicas cenas de ação e efeitos especiais inovadores. Escrito e dirigido pelas irmãs Lana e Lilly Wachowski, que se assumiram mulheres trans anos após o lançamento, o longa trazia, já em seu roteiro original, questões sobre identidade de gênero que só vieram à tona com o passar do tempo.
Um exemplo marcante é a personagem Switch, que integrava a tripulação da nave Nabucodonosor, comandada por Morpheus (Laurence Fishburne). No esboço inicial do roteiro, Switch foi escrita como uma mulher trans, com um conceito que refletia as diferentes versões de uma mesma identidade dentro e fora da Matrix. A personagem seria interpretada por dois atores distintos: um homem no mundo real e uma mulher na realidade virtual, reforçando a dualidade entre o corpo físico e a autoidentidade.
Em uma entrevista à BBC, Lilly Wachowski confirmou o simbolismo:
“Sim, Matrix é uma alegoria trans — foi escrito por duas mulheres trans que ainda estavam no armário. Como não seria?”.
Apesar da visão original das cineastas, a Warner Bros. optou por simplificar a abordagem, escalando apenas a atriz Belinda McClory para o papel, eliminando a transição entre os dois gêneros. Para preservar parte da ideia inicial, a aparência de Switch foi trabalhada com um estilo andrógino, sugerindo uma fluidez de gênero.
Essa escolha do estúdio mostra como, na época, a indústria ainda não estava preparada para representar personagens trans de forma completa e autêntica. Switch poderia ter sido um marco na representatividade trans no cinema de ação, mas sua identidade foi reduzida a algo simbólico.
Com o tempo, Lana e Lilly Wachowski se tornaram referências não apenas por seus trabalhos visionários no cinema, mas também como exemplos de resistência e afirmação trans em Hollywood. Hoje, suas histórias mostram a importância de pessoas trans ocuparem cargos de criação, como direção e roteiro, para que personagens complexos e reais existam nas telas.
O caso de Matrix reforça como a representação não começa apenas com o que vemos na tela, mas com quem está escrevendo e dirigindo essas histórias. Obras criadas por pessoas trans são essenciais para romper padrões limitadores e ampliar o repertório narrativo da indústria audiovisual.
Mesmo após as mudanças impostas ao roteiro, a visão das Wachowski abriu caminho para discussões sobre identidade e corpo, colocando o gênero como parte de um diálogo filosófico sobre realidade e liberdade.
Em tempos de avanço e luta por mais visibilidade, obras como Matrix nos lembram que histórias trans não devem ser moldadas para caber em padrões — e sim, contadas com autenticidade e potência.
Que Switch e outras personagens trans escritas para o cinema inspirem não apenas as telas, mas quem cria por trás delas.
De caracterizadora premiada à diretora respeitada
A representatividade no audiovisual vai além das histórias contadas nas telas: ela também acontece por trás das câmeras, onde diretoras, roteiristas e produtoras constroem narrativas autênticas que quebram estereótipos e ampliam perspectivas. Um exemplo inspirador disso é Britney Federline, a primeira diretora trans da TV Globo, cuja trajetória é marcada por pioneirismo, resistência e talento.
Foram 17 anos de carreira até que Britney, que começou como caracterizadora na prestigiada Casa de Cinema de Porto Alegre, conquistasse seu lugar na direção de Travessia. Aos 39 anos, ela relembra a jornada com humor, mas também com uma profunda consciência sobre os desafios enfrentados pela comunidade trans no Brasil:
“Sou uma sobrevivente. A expectativa de vida de pessoas trans no Brasil é de 35 anos. Já superei a média”, relembra, apontando para a dura realidade revelada pelos dados da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra).
Antes de assumir a direção, Britney construiu uma carreira sólida na caracterização, participando de projetos premiados como o filme Deserto Particular (2021), de Aly Muritiba, representante brasileiro na corrida pelo Oscar de Melhor Filme Internacional em 2022, e a série Doce de Mãe (2012), estrelada por Fernanda Montenegro e vencedora do Emmy Internacional de 2015. Mas, mesmo com seu nome já estabilizado no audiovisual, a transição de carreira foi um movimento raro e desafiador:
“Comecei na novela como assistente de direção. Enquanto me familiarizava com toda a estrutura, fui assistente do André Barros, diretor-geral da novela. Quando começou o núcleo das drags, assumi a direção”, conta a diretora gaúcha.
Um dos aspectos mais marcantes de sua trajetória é como Britney rompeu o estigma de ser associada exclusivamente às cenas do núcleo LGBTQIA+. Ela celebra o fato de ter recebido a confiança para dirigir cenas que vão além da narrativa queer:
“O Mauro (Mendonça Filho, diretor artístico) está me colocando para dirigir outras partes da novela. Eu encabeço o núcleo da boate das drags, mas também dirijo cenas com atores como Chay Suede e Marcos Caruso. Isso é muito especial, porque ser diretora é poder contar todo tipo de história, não apenas as relacionadas a um tema específico”, explica Britney para a Quem.
A presença de Britney Federline na direção de uma das maiores produções da TV brasileira é um marco não apenas para sua carreira, mas para a teledramaturgia nacional como um todo. Sua jornada reforça a importância de abrir espaço para diferentes perspectivas e narrativas no audiovisual — e de valorizar o talento trans além dos papéis impostos pelo preconceito.
Em um país onde a sobrevivência de pessoas trans já é um ato de resistência, Britney se torna um símbolo de possibilidade e transformação: uma mulher trans que não apenas rompeu barreiras, mas mostrou que sua voz pode — e deve — contar todo tipo de história.
Luh Maza e a revolução nos bastidores do audiovisual
Conhecida como a primeira roteirista trans e negra da TV brasileira, Luh é uma força criativa que tem reescrito narrativas com autenticidade e ousadia. De sua infância em Olaria, na zona norte do Rio de Janeiro, até os holofotes da dramaturgia nacional, a diretora e roteirista traçou um caminho repleto de desafios e conquistas, sempre visando criar histórias que reflitam a complexidade e a potência de vidas trans e pretas.
Em 2024, Luh deu mais um importante passo em sua carreira: tornou-se uma das diretoras de Da Ponte pra Lá, série disponível na plataforma Max, que combina drama e investigação em uma trama potente e atual. A série acompanha Malu, uma jovem rapper periférica, em sua busca pela verdade após a misteriosa morte de seu melhor amigo Ícaro, um homem trans com talento para a moda.
Para Luh Maza, representatividade não é uma palavra vazia nem uma estratégia de marketing. Em entrevista ao Terra, ela reflete sobre a importância de ocupar espaços por trás das câmeras:
“Para mim, não se trata apenas de uma pauta ou de ‘lacrar’, mas sim de como mostramos quem nós enfocamos na ficção e como podemos questionar e inspirar a realidade.”
Ao trabalhar em Da Ponte pra Lá, Luh se tornou a única mulher negra e pessoa trans entre os roteiristas e diretores da produção. Mesmo em um espaço ainda restrito, ela se dedicou a preservar a autenticidade da história e garantir que as narrativas fossem éticas e comprometidas com a verdade das vivências que representam.
A série reflete questões urgentes sobre desigualdade social, racismo e transfobia, ao mesmo tempo, em que apresenta protagonistas complexos e talentosos. Malu e Ícaro não são definidos apenas pelas dores impostas pela sociedade: ela é uma rapper empoderada, enquanto ele brilha com suas criações de moda, desafiando a sociedade com criatividade e resistência.
A escolha de Victor Liam, um ator trans, para viver Ícaro, reforça o compromisso da série com a representatividade genuína. Luh Maza destaca a importância de ampliar ainda mais essa presença:
“Tivemos a colaboração de Phelipe Caetano como consultor, mas espero ver mais profissionais transmasculinos como autores-roteiristas e diretores no mercado.”
Luh Maza segue abrindo portas para que outras pessoas trans e pretas possam não apenas contar suas histórias, mas também ocupar cargos de liderança na indústria. Com trabalhos marcantes, como seu papel em Sessão de Terapia (Globoplay, 2012), e agora com a direção de Da Ponte pra Lá, sua trajetória é um convite à reflexão sobre a urgência de diversificar os espaços de criação e tomada de decisão.
Histórias como as de Luh Maza nos mostram que a representatividade no audiovisual vai além da inclusão nas telas: ela precisa ser parte integral do processo criativo. Quando mulheres trans pretas estão no comando, as narrativas se tornam mais ricas, mais humanas e verdadeiramente transformadoras.
A revolução silenciosa dos bastidores
A representatividade trans no audiovisual não se limita à presença nas telas, mas se fortalece nos bastidores, onde roteiristas, diretoras e produtoras dão vida a histórias potentes, quebram estigmas e ampliam perspectivas. O trabalho de mulheres como Luh Maza e Britney Federline evidencia a importância de ocupar espaços de criação e decisão, garantindo que as histórias contadas sejam diversas, autênticas e capazes de questionar realidades.
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Texto revisado por Angela Maziero Santana