Foto: reprodução/Filipe Codeço/Luca Moreira

Entrevista | Filipe Codeço fala sobre a peça Língua, uma junção de português e libras

Ator espera que a peça sirva de incentivo para que mais produções como essa sejam feitas

 

Com 26 anos de carreira, o ator e diretor Filipe Codeço estreou, em 6 de junho no Sesc Copacabana, seu novo espetáculo teatral. A peça Língua, pensada bem como produzida em português e libras, é o mais novo desafio do ator e da equipe, que preza pela inclusão da comunidade surda.

A obra não é apenas traduzida para a língua de sinais, mas realmente foi feita para trazer uma experiência igualitária para o público surdo e os ouvintes, sem a necessidade de um intérprete tradutor. Na peça, além de participar ativamente da criação e do desenvolvimento, Filipe dá vida ao personagem Félix, um taxista ouvinte que precisa aprender a se comunicar com seu amigo Matias, que é surdo.

O ator de 40 anos acumula trabalhos no audiovisual e no teatro, tendo feito parte de produções como: Vai na Fé (Globo) e Essa História Dava um Filme (Multishow), além de dirigir filmes como Marcos e Estamos Vivos (2016).

Com sua peça, Aquilo de que Não se Pode Falar recebeu o Prêmio APTR Nacional de Melhor Ator, em 2021, obra que ainda foi indicada a Melhor Direção, Melhor Espetáculo e Melhor Trilha Sonora, e também se trata de uma produção bilíngue.

Em conversa com Entretê, Filipe fala sobre a importância de levar ao público um trabalho como esse, além de falar sobre outros projetos que desenvolveu ao longo da carreira. Confira:

Entretetizei: O que o inspirou a criar o espetáculo Língua, que explora a junção entre português e libras?

Filipe Codeço: O espetáculo foi idealizado por mim em parceria com Vinicius Arneiro, que é o diretor da peça e assina a dramaturgia junto com o Pedro Emanuel, também tivemos a colaboração da Catarine Moreira, que é uma slammer surda. A inspiração veio do nosso primeiro projeto Aquilo de que Não se Pode Falar, que foi onde a gente trabalhou com um artista surdo chamado Marcelo William da Silva, ele interpretava um personagem chamado Aristides, e tanto eu quanto o diretor não tínhamos muito contato com a comunidade surda, nunca tinha trabalho com nenhum artista surdo.

Iríamos fazer um espetáculo baseado no romance Vacas de Nariz Sutil (2008), do autor Campos de Carvalho, que a princípio seria um solo porque o livro fala sobre um soldado esquizofrênico que foi afastado do exército, e vive em uma pensão; lá ele divide o quarto com um homem surdo, mas eles não têm uma relação direta, eles convivem mas não se comunicam. Em um dado momento do projeto, o Vinicius, que era o diretor, sugeriu que transformassem o personagem surdo em um protagonista, e isso revolucionou completamente o projeto.

E, a partir da experiência que tivemos em Aquilo de que Não se Pode Falar, sentimos a necessidade de ir mais a fundo nessa pesquisa. Então, no Língua pudemos adicionar camadas, pois não é simplesmente uma obra escrita em português e adaptada para libras, é uma obra pensada já em duas línguas e duas culturas.

E: Como você enxerga a importância de trazer um assunto tão pouco explorado e que precisa de mais inclusão para os palcos?

FC: É interessante falar agora porque a peça já estreou, mas, em um primeiro momento era um projeto muito desafiador, um projeto pioneiro, que envolve uma dramaturgia surda e ouvinte e que se constrói dentro dessa perspectiva ao mesmo tempo. Quando trabalhamos com ineditismo, não sabemos como isso vai reverberar no público, achamos que estamos dando um passo muito importante dentro da arte, e dentro de uma ideia de convívio entre pessoas surdas e ouvintes muito importante. 

Vamos colocar uma plateia que é surda e ouvinte convivendo, o que não acontece muito no cotidiano, infelizmente. De fato, estamos dando um passo muito importante para além do nosso trabalho. Mas é muito legal ver que agora estreamos e vemos isso acontecendo, talvez com uma dimensão maior do que prevíamos, porque o retorno da plateia tanto surda como ouvinte, é uma coisa impressionante. Muitos falam que foi a coisa mais impactante que já viram na vida em termos de teatro, mas principalmente que é uma obra de arte que arrebata as pessoas.

Vemos também a importância do reconhecimento de artistas incríveis, que não são percebidos na sociedade, como o ator Ricardo Boaretto, protagonista da peça, que é um artista incrível e hoje é uma referência dentro da comunidade surda. Ele é pioneiro no Brasil de uma linguagem artística chamada visual vernacular que é uma forma de se contar uma pequena história de forma gestual, bem comum na comunidade surda, mas muito pouco fora dela.

Foto: divulgação/Filipe Codeço

E: Tanto o espetáculo Língua, quanto Aquilo de que Não se Pode Falar, abordam a vida de pessoas surdas. Qual foi o impacto dessas obras nas pessoas surdas que foram e estão indo acompanhá-las? Quais feedbacks chegam do público até você?

FC: As respostas que estamos tendo do público são muito ricas. É interessante dizer que para as pessoas surdas essa é uma experiência muito rara, de ir até um teatro e assistir um espetáculo que foi concebido também na língua delas. A comunidade ouvinte talvez tenha como senso comum que toda pessoa surda tenha alguma relação com o português, então deduzimos que ela consiga ler fluentemente mas, essa não é a realidade. A primeira língua das pessoas surdas é a Língua Brasileira de Sinais (Libras), uma língua visual e completamente diversa de uma língua oral, a forma da construção de uma frase é completamente distinta.

O português não é uma língua simples para uma pessoa surda mesmo ela sendo brasileira. É muito rico ver uma pessoa surda indo ao teatro e vendo um espetáculo que é concebido para ela também, na língua dela, e que ela não vai precisar acompanhar a peça através de um intérprete tradutor de libras que fica fora da cena. É muito distinto por exemplo de uma legenda, quando vemos um filme em inglês, vemos a legenda em português, mas ela está dentro do campo visual do filme, no caso do intérprete de libras ele vai estar fora da cena, o que para a comunidade surda não é uma experiência tão interessante, é até ruim.

A comunidade entende a importância de se ter acessibilidade, mas o que se é oferecido hoje, é um passo muito mínimo, e não gera uma experiência artística tão interessante quanto você ver uma obra que é concebida naquela língua. Então o retorno está sendo muito rico, porque de fato elas estão conseguindo sentar e assistir uma peça de teatro que é escrita para elas também. Isso é algo muito raro, e queremos que existam mais iniciativas como a nossa.

E: Quais momentos da sua trajetória você considera mais inesquecíveis nesses mais de 25 anos de carreira? 

FC: Tem um momento recente, que foi quando eu recebi o prêmio APTR de Melhor Ator. É muito bonito receber esse reconhecimento em um prêmio tão importante, mas também pela circunstância como se deu. Eu recebi esse prêmio pelo trabalho em Aquilo de que Não se Podem Falar, em que dividi a cena com o Marcelo William da Silva, um ator surdo. Combinamos que o primeiro prêmio que saísse para a produção, não seria a pessoa que recebeu que iria subir no palco, mas sim o Marcelo, e ele falaria o que ele quisesse em libras e seria traduzido.

E foi lindo, porque quando eu recebi esse prêmio, no primeiro momento o Marcelo subiu, falou tudo o que tinha para falar na língua dele, e depois eu subi para receber o prêmio. Esse foi um momento muito marcante.

E tem momentos que eu diria que nunca vou esquecer, que estão para além do palco. Eu já atuei, por exemplo, em hospitais, uma das minhas formações e principais pesquisas está na linguagem da palhaçaria, que molda muito o meu olhar em relação à vida e em relação à arte. Quando eu trabalhava em hospitais, presenciei crianças vindo a óbito, com as quais eu trabalhava semanalmente.

Trabalhei com uma criança que tinha fibrose cística, que é uma doença muito delicada, e um dia, quando chegamos, essa criança estava em um momento muito próximo de falecer, e eu tive que atuar nesse momento, ela faleceu nesse mesmo dia. Essas e outras vivências que eu tive no ambiente hospitalar, são situações que redimensionaram meu olhar, não sobre a morte mas sobre a vida.

Em oficinas, já tive o relato de um aluno que trabalhava no açougue de um supermercado e ele dizia que os poucos dias que ele passou na oficina fez com que ele revisse toda a vida, é muito rico saber como a gente pode de fato impactar e afetar a vida das pessoas.

Foto: divulgação/Filipe Codeço

E: Além de ator, também podemos conhecer seu trabalho como cineasta, em filmes como Marcos, que aborda questões importantes não só sociais mas também de saúde. Existem outros temas que na sua opinião precisam ser colocados em foco e que você gostaria de desenvolver projetos?

FC: É interessante ver como as minhas obras sempre se interessam por pessoas e por modos de vida que são um pouco diversos de uma ideia normativa. Marcos é um filme sobre meu primo que sofre de um transtorno chamado discalculia, um transtorno de aprendizagem que é quase uma cegueira dos números. Ele tem uma dificuldade imensa de lidar com tudo que envolve a dimensão dos números, como a própria idade ou a passagem do tempo, então fiz um filme sobre ele e com ele.

Meu primeiro longa como diretor não foi um projeto escrito por mim. O longa é uma reunião de família em plano-sequência, em que o filho volta para o enterro do pai depois de 11 anos afastado. Só que a história é filmada por uma criança de oito anos que é autista, e também mergulhei em uma tentativa de entendimento do autismo. 

Meu primeiro espetáculo escrito chamado Mono Diálogos a Macoretas é uma obra que também se debruça sobre pessoas que têm uma certa fobia social. Minhas obras sempre vão de encontro às diversas  condições de existir no mundo. Isso me surge de forma natural, eu não escolho as minhas inquietudes de criação, são coisas que me despertam o interesse e eu me coloco a refletir. 

Tem um projeto que ainda vou desenvolver que busca refletir sobre o suicídio. Eu tive algumas relações com o suicídio na minha vida, meu pai faleceu quando eu tinha 12 anos e eu entendi que ele optou por se suicidar. Isso não é uma coisa muito falada na família, é um tema delicado de se abordar, mas para mim é muito importante querer entender essas dimensões. Quando há alguma coisa de que não se pode falar, eu acho que nesse momento a gente precisa falar sobre, porque o não falar gera muitos problemas no mundo. Então, quero fazer em algum momento um filme sobre o suicídio, muito a partir dessa experiência que tive com meu pai. Tenho um curta chamado Memórias que Me São, em que já começo a fazer uma pequena reflexão.

E: Quais são seus próximos planos e projetos profissionais? 

FC: O meu grupo Bando de Palhaços tem um espetáculo novo para sair a qualquer momento. O espetáculo se chama Cidade Selva e tem direção do André Paes Leme, que é um diretor incrível, e texto de Rafael Souza Ribeiro, um grande dramaturgo maravilhoso. 

Meu segundo longa Marcos, ainda não entrou em circuito comercial, só cumpriu a carreira de festivais, mas agora vou pensar nesse lançamento, se vou colocá-lo no circuito comercial ou direto nos streamings, estou refletindo sobre isso. 

Também tenho o projeto de um longa-metragem de ficção que não sei quando vou me debruçar na realização, mas é uma obra muito autoral que comecei a desenvolver a cerca de 15 anos; certamente vai ser meu projeto mais arrojado esteticamente como diretor.

 

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Texto revisado por Angela Maziero Santana

 

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