Filme de Ridley Scott, O Último Duelo conta a história real do combate até a morte entre Jean de Carrouges e Jacques Le Gris e a luta de Marguerite de Carrouges para provar sua inocência
{Contém Spoiler!}
Antes de começar a escrever a resenha sobre o filme, devemos levar em consideração alguns fatores importantes. O Último Duelo é um filme baseado em uma história real, que aconteceu no ano de 1386, na França, onde um cavaleiro do rei, Sir Jean de Carrouges, desafiou seu até então amigo e também cavaleiro, Sir Jacques Le Gris, a um duelo até a morte. O motivo: a esposa de Jean, Marguerite, havia assumido que Jacques a estuprara. Esse é o enredo principal do filme, agora, vamos aos detalhes históricos.
Para quem já viu o longa de Ridley Scott, fica bem clara a situação tanto política, quanto econômica da França de 1380. O reino francês, que passava por uma crise política após a morte de Carlos IV, em 1328, entrou em guerra com o reino da Inglaterra pela disputa do trono. O que ocorreu é que o então rei inglês, Eduardo III, era neto de Felipe, o Belo, e usou desse parentesco para justificar sua reivindicação ao trono francês. Entretanto, o objetivo de Eduardo era unir os dois países em um só, conquistando a França e se beneficiando de seu comércio em expansão. Afinal, a França lucrava bastante com suas indústrias têxteis, mesmo importando lã da Inglaterra.
A Guerra dos Cem Anos durou um século de batalhas sangrentas, com grandes e importantes perdas para os dois lados – incluindo Joana D’Arc, uma jovem camponesa francesa que, após muitos anos, viria a ser um nome importante na história do país – e resultou na vitória da França, na cidade de Castillon. Dividida em quatro períodos e iniciando em 1337, a guerra passou por diversas pausas devido à Peste Negra, doença que dizimou um terço da população europeia, e encontrou seu fim em 1453.
Para a Inglaterra, a guerra significou o fim das tentativas de obter domínio sobre a Europa. Na França, a guerra fortaleceu o sentimento patriótico e foi extremamente importante para o surgimento de uma monarquia nacional e absolutista.
Você deve estar se perguntando o que essa pequena introdução de história tem a ver com o filme. Pois bem, Jean de Carrouges foi um cavaleiro da tropa real e lutou durante a Guerra dos Cem Anos, servindo à Coroa francesa e ao seu rei, Carlos VI, além de ser vassalo do Conde Pierre. Seu amigo mais íntimo e também padrinho de seu filho – Jean foi casado com Jeanne de Tilly e, com ela, teve um herdeiro. Tanto Jeanne quanto seu filho morreram devido à Peste Negra -, o escudeiro Jacques Le Gris, também virou vassalo de Pierre, sendo considerado seu favorito.
Ao longo dos anos, Jacques Le Gris foi agraciado com mulheres, títulos e reinos, incluindo Aunou-le-Faucon, uma região que fazia parte das terras da família Thibouville e, por assim dizer, pertencia ao dote de Marguerite de Thibouville. A propriedade havia sido vendida ao Conde Pierre para saldar as dívidas de Robert de Thibouville para com a Coroa e foi repassada a Jacques como pagamento, em 1377, após o escudeiro sair para coletar os aluguéis.
Em 1380, Jean de Carrouges retorna à sua terra após anos lutando na Escócia – batalha essa que foi perdida e extremamente vergonhosa para a Coroa – e casa-se com Marguerite de Thibouville. À época, a jovem era considerada bela, modesta e de berço, com um dote que incluía diversas propriedades e hectares de terra. O casamento não foi feliz por muitos anos, mas serviu seu propósito para Jean. Quando descobriu que não seria proprietário da maior parte do dote de sua esposa, a propriedade Aunou-le-Faucon, Jean partiu em busca de explicações, confrontando Conde Pierre e Jacques Le Gris, o que destruiu definitivamente a amizade entre os dois cavaleiros.
Alguns anos mais tarde, Carrouges e Le Gris concordaram em selar a paz em um evento na Escócia, onde o primeiro apresentou sua esposa ao segundo, que se viu completamente apaixonado. É importante lembrar que os costumes na época não impediam relações extraconjugais e, inclusive, era algo amplamente aceito dentro da sociedade. Quando Carrouges viaja à Paris a fim de coletar seu pagamento pela campanha na Escócia, Le Gris invade a propriedade de Jean e estupra Marguerite, sob o pretexto de que os dois estavam apaixonados e que era dever dele cobrar dela essa paixão. Marguerite passa por diversos dias em sofrimento absoluto, até resolver contar a seu marido o que o escudeiro havia feito.
Antes mesmo do século XIV, e durante muitos anos depois, o estupro era considerado algo normal e a vítima, na esmagadora maioria das vezes, deveria ficar calada a respeito disso. Também acreditava-se que, para se gerar um filho, a esposa deveria sentir prazer durante o ato sexual. “A pequena morte”, como eles chamavam, deveria ocorrer e, com ela, a semente era implantada no útero da mulher, gerando um filho. Essa teoria era amplamente discutida tanto nas cortes quanto na sociedade. Então, quando Marguerite resolve se expor e contar que foi estuprada por um dos homens de confiança do Conde Pierre, seu discurso é ridicularizado pelo fato dela se encontrar grávida. Por diversas vezes, a jovem foi acusada de gostar da relação com Le Gris, de ter provocado tal situação e, como consequência, de ter engravidado dele. A verdade dos fatos, como se descobre alguns meses mais tarde, é que o filho não era de Le Gris, mas sim herdeiro de Carrouges.
Após contar para o marido o que havia acontecido com ela, ele parte em busca de um julgamento justo ao apelar ao próprio rei e pede o que era chamado na época de Trial by Combat, julgamento por combate, na tradução literal. Nele, os cavaleiros lutam até a morte, provando a culpa ou a inocência da ré em questão. Eles podem escolher qualquer tipo de arma à sua disposição e nenhum golpe é condenado. Esse combate é realizado dentro de uma arena, com a presença dos reis, nobres e sociedade, para que haja testemunhas do caso. Se Carrouges vencer o combate, Marguerite é inocentada e considerada sincera em seu julgamento, já que todas as acusações de estupro eram consideradas infundadas na época. Se perder, sua esposa é considerada mentirosa e é queimada na fogueira por falso testemunho.
O duelo por combate de Jean de Carrouges e Jacques Le Gris é o último julgamento do tipo a acontecer na França, uma vez que o combate foi proibido após a Guerra dos Cem Anos, pelo então rei Carlos VII. Jean e Jacques se enfrentam com lanças, espadas, cavalos e machados e o primeiro saiu vitorioso, após pedir para que o segundo confessasse seu crime, o que não aconteceu. Com um golpe fatal de espada no rosto, Jean celebra a vitória e inocência de sua esposa perante a corte e sociedade. Jacques é então despido de sua armadura e pendurado em praça pública, ao lado de pequenos ladrões e assassinos, onde é hostilizado pelo povo, tendo seu corpo profanado. Após um tempo, ele é arremessado em uma cova coletiva e sua memória fica manchada, mas nunca esquecida. Após o duelo, Jean de Carrouges tenta reaver a propriedade de Aunou-le-Faucon, mas Conde Pierre a pega de volta e fica com ela para si, claramente em respeito à morte do amigo e fiel escudeiro Jacques Le Gris.
Sobre o filme de Ridley Scott, O Último Duelo
A adaptação do livro homônimo de Eric Jager por Ridley Scott, é algo absurdamente deslumbrante. Famoso por dirigir filmes épicos como o icônico Gladiador, Scott transformou a história em algo muito além das expectativas, fazendo com que o espectador conhecesse as versões de uma forma ainda mais íntima do que a lida no livro de Jager ou nos livros de história.
Dividido em três capítulos, O Último Duelo conta a história do estupro de Marguerite vista pela perspectiva dos três personagens centrais da história: Jean de Carrouges, vivido por Matt Damon; Jacques Le Gris, vivido por Adam Driver; e Marguerite de Carrouges, vivida por Jodie Comer. Ela entrega absolutamente tudo, de forma viva e nos dá uma Marguerite não indefesa, como retratada pela história, mas empoderada, ciente de si e de sua história e seu sofrimento fica evidente em cada segundo de todo o filme.
Adam Driver, que também está em busca de seu primeiro Oscar, dá um show de talento, ao fazer o impetuoso Jacques Le Gris. Durante o filme, ele demonstra toda a sua sensualidade ao lado de belas mulheres, fala latim – o que, para a grande maioria das moças, já é um sinal de elegantismo – e mostra um físico impressionante, que fica evidente nas cenas de batalha. Como o vilão da história, Driver dá tudo de si para o papel e quem não sentiu raiva de seu personagem nas cenas mais cruéis do longa, com certeza não viu direito. Há quem diga que se o espectador sentiu raiva do vilão é porque o ator entregou muito além do esperado.
Um grande nome que aparece nos filmes como Conde Pierre, é o nosso eterno Batman, Ben Affleck. Apesar de aparecer poucas vezes, Affleck atua como um personagem boêmio, adúltero e cômico, alternando entre cenas divertidas e de embates rasos tanto com Driver, quanto com Damon. Suas falas também beiram à comédia e mostram um Conde mimado e desinteressante. Fora que a caracterização de seu personagem é uma das mais caricatas do filme, apresentando Affleck como um mero coadjuvante.
Uma coisa que eu, como espectadora, gostei muito durante o filme foi a posição das câmeras de acordo com cada capítulo, mostrando a perspectiva de cada personagem. Cada um dos três capítulos conta com detalhes a história de Marguerite; porém, em cada olhar, você percebe detalhes que não contém no outro capítulo. Ou seja, aquela premissa de que existem sempre três histórias:, a sua, a minha e a verdade, é evidenciada em cada uma das partes contadas no filme – inclusive, dando ênfase na palavra verdade quando começa o capítulo contado pela própria Marguerite. A cenografia também chama muita atenção, uma vez que o filme se passa durante o século XIX, em uma França despedaçada pela morte de seu rei.
Apesar de ser um filme cruel, que mostra a vulnerabilidade das mulheres durante a Era Medieval – e um pouco durante a atualidade – Ridley Scott faz questão de terminar o filme com uma cena em que Marguerite é ovacionada pela população, após ter sua verdade atestada em combate. Durante todo o filme, Jodie Comer e sua Marguerite são humilhadas e maltratadas por uma sociedade extremamente machista e patriarcal, condizente com sua época. Scott procura mostrar nos diálogos, o quanto a mulher sofria por conta de seu sexo e nos apresenta um viés completamente errado sobre a anatomia humana, defendida por homens da Corte e do Clero. Ao dar o primeiro passo para defender-se de um estupro, Marguerite é abandonada e humilhada por todos ao seu redor. Sofre uma pressão negativa de sua própria sogra que, além de não acreditar nela, a incentiva a ficar calada, revelando que também havia sido estuprada e que, por pertencer ao seu marido (quase como uma propriedade), ela deveria ficar quieta sobre tudo o que acontecera.
O que ocorre, na verdade, é que Marguerite foi a primeira mulher na história da França, e ouso dizer no mundo, a ter coragem de enfrentar sua família, homens poderosos e toda uma sociedade para provar seu valor. Para provar que ser mulher não é apenas obedecer seus maridos e sofrer consequências de atos que elas nem cometeram ou pediram para acontecer. A poderosa mensagem que Scott faz questão de passar ao final do longa, é que as mulheres não só podem como devem enfrentar seus abusadores e irão sair vitoriosas de suas denúncias, e que homens pequenos e vis que fazem da mulher um objeto não merecem perdão ou, em um sentido mais de acordo com o filme, não merecem viver.
Com atuações impecáveis, cenários lindíssimos e uma história difícil de ser contada, mas esculpida com maestria por Scott, O Último Duelo é um filme que promete render alguns Oscars para o elenco, diretor e time de roteiristas. Um emocionante filme de época, com foco em mostrar a história por trás da máscara do patriarcado e machismo, no qual os espectadores podem trazer para atualidade conceitos que são explorados no filme, como estupro, ciência, anatomia humana e relações interpessoais.
O filme estreou no último dia 14 de outubro e está em todos os cinemas brasileiros. Confira o trailer clicando abaixo.
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*Crédito da foto de destaque: Divulgação