O Entretê vai te levar a uma reflexão sobre como a representação negra no cinema de terror traz à tona padrões cinematográficos racistas.
Na história do cinema, a população negra sempre foi representada como coadjuvantes com papéis extremamente problemáticos.
Isso pode ser notado com estereótipos em personagens ridicularizados, sofrendo violências terríveis durante todo o filme, como os amigos do personagem branco (que normalmente morrem para salvar esse amigo bem no começo do filme) ou ainda como o famoso vizinho que sabe mexer com feitiçaria, podemos notar uma persistência de uma representação negra específica.
No livro Horror Noire: a representação negra no cinema de terror, Robin R. Means Coleman traz uma análise histórica abrangente da presença da cultura negra no cinema de terror norte-americano, nos explicando o surgimento desses padrões.
A obra explora questões como o apagamento da pessoa negra nas narrativas cinematográficas, a criação e perpetuação de estereótipos, bem como os esforços de resistência em busca de uma representação mais autêntica.
Além disso, o livro é resultado de uma extensa pesquisa conduzida pela autora, que atuou como professora adjunta no Departamento de Estudos de Comunicação e no Centro de Estudos Afro-americanos e Africanos da Universidade de Michigan.
Filmes de Terror com Negros e Filmes Negros de Terror
Os Filmes de Terror com Negros abordam diretamente a população negra e a negritude e muitas vezes são produzidos por não-negros para o público geral. Eles perturbam as noções de segurança e racionalidade do espectador, explorando a diferença entre o racional e o selvagem.
Alguns retratam o outro racial como monstros, enquanto outros usam personagens negros escassamente, destacando ainda mais sua ausência. Alguns filmes utilizam monstros fictícios para simular questões raciais, como O Monstro da Lagoa Negra (1954).
O conceito de bem e mal é frequentemente centrado na questão racial, como visto em O Nascimento de uma Nação (1915),que retrata os negros escandalosamente e pró-Ku Klux Klan, destacando representações sutis que demonizam a negritude até os dias atuais. É claro que precisamos examinar esses filmes com uma perspectiva histórica, mas entender os absurdos retratados serve como um alerta para as produções atuais.
Já os Filmes Negros de Terror tem como característica uma narração com foco em questões de identidade racial, ao abordar a negritude e todas as suas várias camadas. Trazendo às telas faces da cultura negra, história, experiências, politicas, estética e outras coisas mais específicas, como a música, abordando o que é ser negro de uma forma mais abrangente, em um contexto de terror.
Embora estes filmes tenham um produtor, diretor, roteirista ou artistas negros, a simples presença de uma equipe negra não é motivo suficiente para classificar uma produção como Filme Negro de Terror.
O Nascimento de uma Nação (de Ideias Racistas)
O filme O nascimento de uma nação, de D.W. Griffith, teve seu roteiro baseado em dois livros do supremacista branco Thomas Dixon Jr., The Leopard’s Spots: A Romance of the White Man’s Burden, (1901) e The Clansman: An Historical Romance of the Ku Klux Klan (1905).
No filme, Griffith conta a história de duas famílias — os sulistas Camerons e os nortistas Stonemans — durante o período de reconstrução pós-Guerra Civil. No primeiro ato do filme, temos a versão de Griffith do fim da Guerra Civil e do assassinato do presidente Abraham Lincoln, enquanto o segundo ato é basicamente sobre a união dos brancos sulistas e nortistas e seus servos negros fiéis.
A família sulista, era dona de escravos e é bem-estruturada, enquanto seus amigos nortistas da família Stonemans são abolicionistas e seu patriarca é retratado como um homem doente de bom coração que foi ideologicamente enganado pelos negros.
Segundo Ed Guerrero, historiador de cinema, o filme foi o primeiro longa estadunidense que estabeleceu padrões técnicos usados até hoje, enquanto perpetuava a narrativa de desvalorizar os afro-estadunidenses a meros servos, valentões, mal-educados e folgados.
Um exemplo dessa narrativa, é o fato de que os personagens negros, que eram em sua maioria atores brancos com seus rostos pintados, tinham papéis problemáticos. Veja a lista a seguir:
- Gus (Walter Long), um soldado linchado pela Ku Klux Klan por dar em cima de uma jovem branca;
- Silas Lynch (George Siegmann), um político corrupto;
- Lydia (Mary Alden), uma mulher negra que sequestra e amarra uma mulher branca, porque Lynch a deseja;
- Mammy (Jennie Lee) e Tom (Thomas Wilson), dois ex-escravizados que se mantêm fiéis aos seus antigos donos e continuam a trabalhar como servos.
O Nascimento de uma Nação introduz os espectadores a negritude para associá-la a uma monstruosidade quando os soldados negros da União chegam a cidade saqueando e atacando pessoas brancas inocentes, quase que com o prazer pela guerra.
São mostrados em contraste aos soldados confederados brancos, os quais são apenas homens brancos cansados da guerra que querem apenas proteger suas terras (brancas) e seu povo (branco).
O Nascimento de uma Nação não só retratou o homem negro como vilão, mas também o apresentou como um monstro altamente sexualizado, representando uma ameaça para as donzelas brancas, sendo todos potenciais estupradores, além de em certas cenas, representar o negro como favorável ao canibalismo.
No longa, essa narrativa é construída para justificar os linchamentos realizados por membros da Ku Klux Klan, abordados no filme como verdadeiros heróis americanos. Este filme foi responsável por transformar a percepção do homem negro no cinema, tornando-o uma fonte constante de perigo.
Consequentemente, como aponta Coleman (2019, p. 68): “A negritude foi efetivamente transformada, e o negro se tornou uma das criaturas mais terríveis e temidas de todas.”
O Negro Sempre Morre
A frase que ouvimos desde sempre sobre o gênero do terror, pode trazer um tom de comédia, porém precisa ser analisada mais a fundo. De mil produções analisadas pelo site Black Horror Movies, cerca de um em cada dois personagens negros, morre. Ainda que nos filmes atuais, essa conta mude, pois a diversidade nos trouxe mais personagens negros nas produções, o padrão continua lá.
O terror nos filmes, além de causar medo, muitas vezes serve como uma forma de expressar ideologias. A ideia de que todos eventualmente morrem tenta eliminar questões políticas ao generalizar a morte.
Isso acaba retirando a responsabilidade dos produtores do filme em representar adequadamente a sociedade. Porém, mesmo em filmes de terror, as mortes não são todas iguais.
A ideia de que personagens negros sempre morrem primeiro aponta para uma questão mais profunda sobre a representação e a importância do corpo negro no gênero. Isso mostra que, mesmo com tentativas de incluir diversidade, as desigualdades persistem.
A falta de representação negra no cinema de horror não só simbolicamente, mas também fisicamente, evidencia uma forma de violência invisível. Os personagens negros, quando presentes, muitas vezes são tratados como descartáveis, como se fossem apenas parte de uma máquina de matar.
Afinal, pense nos slashers ambientados nos subúrbios, como A Hora do Pesadelo (1994) e Halloween (1978) e tente se lembrar da quantidade de personagens negros que moravam nestes lugares nos anos 1980. Ou seja, a não existência de personagens negros às vezes diz mais do que a sua inserção descontextualizada.
O Sacrifício Negro e o Negro Mágico
Nos filmes de terror, é comum observar um padrão recorrente onde personagens negros são frequentemente sacrificados em prol do desenvolvimento ou sobrevivência dos personagens brancos. Nessa dinâmica, se os negros aparecem para contribuir com o gênero, sua participação é vista em filmes de terror com negros, sendo marcada por um apoio afirmativo aos brancos.
Na década de 1980, nos filmes, os negros se viam sob pressão para sustentar um sistema de lealdade e confiança que geralmente era unilateral. Em outras palavras, esperava-se que os negros fossem leais aos brancos sem necessariamente receber a mesma lealdade em troca. O que é ainda mais preocupante é que, nesses filmes de terror da época, a lealdade dos personagens negros aos brancos era frequentemente demonstrada não apenas pelo desejo de ajudar, mas também pela disposição de enfrentar uma morte terrível para salvar um personagem branco.
O filme O Iluminado (1980), dirigido por Stanley Kubrick, é um ótimo exemplo. Em primeiro lugar, o filme retrata um personagem negro que se sacrifica voluntariamente, morrendo enquanto salva um personagem branco, muitas vezes só para provar ao personagem branco o quão perigoso é a atual situação.
Em segundo lugar, o filme usa o estereótipo do negro mágico, no qual um personagem negro possui habilidades sobrenaturais empregadas não em benefício próprio, de sua família ou comunidade, mas sim em favor de pessoas brancas. Em quantos filmes esse estereótipo não foi usado?
Por exemplo, no filme À Espera de um Milagre (1999), que se passa na década de 1930, o personagem negro John Coffey (Michael Clarke Duncan) é mostrado como um grandalhão mágico e burro que está no corredor da morte por um crime que não cometeu. Coffey cura a hérnia de seu executor com um toque de mão, libertando o homem da dor e renovando sua vida sexual.
Além disso, Coffey remove o câncer da esposa do diretor da prisão, salvando a vida dela. Surpreendentemente, Coffey até mesmo reduz dramaticamente o processo de envelhecimento de um rato. Contudo, apesar de suas habilidades extraordinárias, Coffey não usa seus poderes para salvar a si, sendo executado por aqueles a quem ajudou, embora estejam cientes de sua inocência.
Como Coleman conclui em Horror Noire, os personagens negros frequentemente recebem qualidades santificadas e até mesmo mágicas numa tentativa errônea dos cineastas de rebater estereótipos racistas. No entanto, caracterizações desse tipo, na verdade, servem ao público branco. É como se fosse necessário santificar um negro para que ele adquira o equivalente moral de um branco.
O Protagonismo Negro
Por outro lado, existem momentos e produções no gênero que procuram transcender essas problemáticas, ainda que possam enfrentar críticas, como, por exemplo, em 1968, A Noite dos Mortos-Vivos traz à tona a importância de um protagonista negro. Na década de 1970, o movimento Blaxploitation viu um aumento significativo da presença de homens e mulheres negras em diversas áreas artísticas.
Nos anos 1990, Candyman resgatou o protagonismo negro, enquanto a virada para os anos 2000 trouxe uma abordagem explícita das questões sociais contemporâneas. No entanto, é importante problematizar os novos estereótipos surgidos no Blaxploitation, como os de cafetina e cafetão, assim como a representação da perseguição de uma mulher branca por um homem negro em Candyman.
Hoje, com produções como Nós (2019), chegamos a um cenário em que representações preconceituosas já não têm mais sustentação, e as discussões raciais estão ganhando grande força.
Em um contexto onde o terror reflete e molda percepções sociais, é vital questionar a eficácia da representação negra no cinema. Analisar como o horror retrata personagens negros não apenas revela as raízes de preconceitos enraizados na sociedade, mas também desafia os padrões estabelecidos, incentivando a busca por narrativas mais inclusivas e significativas.
Cineastas como Spike Lee, Jordan Peele, Ava DuVernay, Barry Jenkins e Ryan Coogler exemplificam como os afrodescendentes têm um papel crucial a desempenhar no cinema, indo além de serem apenas coadjuvantes ou instrumentos na narrativa da evolução dos brancos. Desde obras profundas como Infiltrado na Klan (2018) e Selma (2014) até produções de puro entretenimento como Corra! (2017) e Pantera Negra (2018) eles demonstram de forma vívida como a representatividade é verdadeiramente eficaz.
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Texto revisado por Thais Moreira