A cineasta brasileira falou tudo sobre o filme A Febre, além de compartilhar os bastidores e os projetos para o futuro
A Febre é um longa premiado e carregado de representatividade. O filme de suspense e drama estreou em 12 de novembro de 2020. Até que, no último dia 3 de fevereiro, a produção entrou para o catálogo da Netflix Brasil.
O enredo do longa brasileiro mostra como ocorre a integração dos indígenas na cidade grande, além de abordar a preservação da tradição de cada povo.
A Febre foi exibido pela primeira vez em 2019, durante o Festival de Locarno, na Suíça, e foi selecionado para ser exibido em mais de 60 festivais ao redor do mundo.
Vem aí o plot twist: o filme é dirigido pela carioca Maya Da-Rin, que é roteirista, produtora e artista visual. Maya teve seus filmes exibidos em mais de 100 festivais nacionais e internacionais, sendo contemplada com dezenas de premiações, parte delas resultados de A Febre.
Em entrevista exclusiva ao Entretetizei, Maya Da-Rin começou deixando claro que o nome do filme, A Febre, já diz muito sobre o que o longa quer desconstruir. “Acredito que a nossa sociedade está doente porque não é mais capaz de se relacionar com a alteridade e nem de suportar as diferenças.”
“Somos a única espécie que extermina a si própria. Isso aconteceu durante séculos de colonização e segue acontecendo hoje, quando fechamos os olhos para os refugiados ou para as queimadas, quando agimos com indiferença em relação ao aquecimento global e o desmatamento das florestas”, completa a diretora.
Sentiu a energia desta entrevista? Continue com a gente neste bate-papo necessário.
Os primeiros sintomas de A Febre
A ideia inicial do enredo de A Febre surgiu durante as filmagens de dois documentários que Maya realizou na fronteira entre o Brasil, a Colômbia e o Peru, no sudoeste do Amazonas.
“Conheci algumas famílias indígenas que tinham migrado de suas aldeias para se estabelecerem nas cidades. Acabei criando uma relação de amizade com uma dessas famílias e as conversas que tivemos nos anos seguintes, me trouxeram a vontade de realizar um filme de ficção”, conta a cineasta.
O longa foi gravado na capital do Amazonas e, de acordo com Maya, não existiram dúvidas sobre ser o local ideal. “Manaus é uma cidade que sempre me intrigou por encarnar, tanto na sua história, quanto na sua paisagem, o contraste entre diferentes projetos de sociedade.”
“De um lado, temos as formas de organização social das sociedades ameríndias, originárias daquele território e, de outro, o projeto colonial ocidental e capitalista, que deu origem ao Polo Industrial e à organização urbana de Manaus, e que pouco dialoga com a floresta, com as suas formas de vida e com os seus saberes”, explica a produtora.
Ainda segundo ela, o roteiro de A Febre foi produzido já pensando na cidade. “Eu geralmente começo um projeto por um lugar e procuro passar o máximo de tempo ali, caminhando, conhecendo as pessoas e tentando entender de que forma eu me relaciono com a história daquele lugar.”
Maya conta que escreveu o roteiro durante as temporadas que ela e o corroteirista, Miguel Seabra Lopes, passaram em Manaus.
“Frequentamos comunidades indígenas nos arredores da cidade, acompanhamos as jornadas dos trabalhadores do Porto de Cargas de Chibatão e das enfermeiras de uma UBS na periferia da cidade”, diz ela.
O filme é um retrato fiel da realidade. “Ao longo dessa pesquisa, vivenciamos muitas situações que foram incorporadas ao roteiro e também pudemos imaginar outras que não nos teriam ocorrido sem o convívio com as pessoas e a vivência dos lugares.”
A produção audiovisual do longa também contou com profissionais do Amazonas. E Maya enfatiza: “O desejo de realizar um filme passa pelos encontros que se produzem no processo.”
Todo o desenvolvimento do projeto foi alimentado pelas trocas que Maya Da-Rin teve durante o tempo que passou na cidade. “A equipe de filmagem é majoritariamente manauara e as contribuições que eles trouxeram foram fundamentais”, destaca a diretora.
“Não só porque são pessoas que vivem e conhecem profundamente Manaus, mas principalmente, porque são artistas muito sensíveis e talentosos. Todos os departamentos contaram com profissionais manauaras em suas equipes, em muitos casos, realizadores que também desenvolvem um trabalho pessoal e autoral e que vieram contribuir com o filme. A Febre não seria possível sem eles.”
O elenco é uma febre de representatividade
A Febre tem o elenco principal composto por atores indígenas do Alto Rio Negro, no Amazonas, pertencentes aos Desanos, Tarianos e Tukanos. Além disso, possui como idioma original o português e as línguas indígenas: tukano e tikuna.
A diretora ressalta que a pesquisa de elenco foi um longo processo, que durou mais de um ano e contou com a colaboração de uma equipe de Manaus.
“Visitamos as comunidades dos arredores de Manaus e São Gabriel da Cachoeira, convidando quem tivesse vontade de participar do filme para uma conversa. Estive com mais de 500 pessoas antes de encontrar os atores e atrizes que interpretam os personagens da família de Justino”, relembra Maya.
O amor entre pai e filha transborda durante o filme. Sobre a escolha de Regis Myrupu e Rosa Peixoto para os papéis de protagonistas, a cineasta é específica. “Regis me chamou atenção pela sua presença e pela precisão de seus movimentos.”
“Já na Rosa, havia algo que eu não conseguia acessar, como um segredo, que era o que eu buscava para a personagem de Vanessa”, completa.
“Antes de começarmos a ensaiar, eu e Regis passamos uma semana na sua casa, nos arredores de Manaus, lendo e conversando sobre o roteiro. Durante essas leituras, reformulamos algumas cenas e diálogos a partir das sugestões e contribuições do Regis.
Em seguida, tivemos dois meses intensos de ensaio, quando continuamos conversando e retrabalhando o roteiro com a participação dos outros atores indígenas e da Amanda Gabriel, que conduziu os ensaios junto comigo.
Na maior parte das vezes, as cenas eram construídas a partir de improvisações e a língua sempre foi um elemento central para nós. Como eu não falo tukano, íamos alternando entre as duas línguas e esse processo de tradução foi fundamental para a construção das cenas.
Acredito que as línguas não são apenas uma ferramenta através da qual comunicamos ideias. Elas formam um sistema de pensamento, determinam nossa linguagem corporal, tem suas pausas e ritmo próprio.
Quando os atores improvisam uma cena em tukano, a cena sempre se transformava. Às vezes eram os diálogos, outras vezes os movimentos, os gestos ou até mesmo o sentido da cena. Conversávamos muito sobre a tradução de uma língua para outra, sobre o que era intraduzível, o que se perdia ou o que ganhava um novo sentido.
Durante esses encontros, também contávamos muitas histórias. Era uma maneira de nos conhecermos, de ativar a memória e a ideia de que estávamos ali para contarmos juntos uma história.
O cinema é esse lugar, onde se contam histórias, e nas culturas dos povos ameríndios, de tradição oral, o conhecimento é transmitido através das histórias contadas de uma geração à outra.
Acredito que para contar é fundamental saber ouvir e atuar, e sobretudo escutar o outro. A história que Justino conta para o seu neto durante o jantar, por exemplo, foi uma das histórias que o Regis nos contou durante os ensaios”, relata Maya.
Esqueça a sociedade eurocêntrica, existem outras narrativas
Maya Da-Rin ressaltou o que devemos refletir com A Febre. “Precisamos começar a questionar urgentemente as formas de conhecimento eurocêntricas que herdamos, porque elas não têm se mostrado muito eficientes para a manutenção da vida, nem mesmo da nossa própria espécie.”
Maya se refere ao Eurocentrismo, um pensamento que coloca a Europa como centro cultural do mundo, em que somente ela constitui o que chamamos de “sociedade moderna”. A Febre veio para mostrar que essa visão de mundo é totalmente irreal.
Mesmo com tantos avanços nas produções brasileiras, ainda é um marco que o enredo tenha foco principal nos povos indígenas. Sobre isso Maya destaca: “Apesar de grande parte da população indígena no Brasil viver em cidades, essa ainda é uma realidade muito pouco retratada pelo nosso cinema, e permeada de estereótipos e preconceitos.”
O cinema brasileiro tende a exotizar os indígenas como povos que não se encaixam na cultura padrão da sociedade, ou como aqueles que pararam no tempo. Essa é uma narrativa muito presente ao longo do filme, visto que um dos personagens é várias vezes julgado acerca de suas raízes.
“Sabemos da propensão do cinema em exotizar as culturas indígenas e da tendência em enxergá-las por um prisma romântico e positivista, como remanescentes daquilo que as culturas ocidentais foram no passado e não como as sociedades complexas e atuais que são, com formas de conhecimento que vem se mostrando muito mais promissoras que as nossas”, ressalta Maya.
Ainda sobre a visão eurocêntrica, a diretora destaca, “Não falo em negar a ciência e a tecnologia, mas estou segura de que existem formas de produzir conhecimento sem tanta exploração e destruição.”
“Mas, para isso, precisamos desconstruir o mito moderno e patriarcal da conquista da natureza pelo homem e voltar a povoar o nosso imaginário, tomado por tantos sonhos de dominação e acumulação, com outras narrativas”, completa.
O longa é uma febre nos festivais (literalmente)
Muito bem aclamado nos festivais nacionais e internacionais, o filme recebeu 29 premiações.
Sobre a construção desse legado para o cinema brasileiro, Maya ressalta que a produção foi feita para o mundo. “A partir do momento que realizamos um filme, ele passa a ter vida própria. Nunca sabemos como ele será recebido.”
“O caminho que A Febre percorreu nos trouxe muitas alegrias. Além dos festivais onde foi exibido e dos prêmios, o filme foi muito bem acolhido pela crítica.”
A Febre chegou nos streaming ano passado e, agora, também está disponível na Netflix. “Os retornos mais significativos que tivemos são os comentários do público que começaram a chegar quando o filme foi lançado nas plataformas digitais no Brasil.”
“É muito emocionante para todos nós da equipe, ver o filme tocando tantas pessoas, tanto indígenas quanto não-indígenas”, comenta a diretora.
A Febre irá passar?
Não, A Febre não vai passar tão cedo. Maya Da-Rin compartilhou os próximos caminhos pelo qual o longa irá percorrer. “O filme vai estrear no Lincoln Center, em Nova Iorque, agora em março e os distribuidores esperam que entre em cartaz em umas vinte cidades dos Estados Unidos e Canadá.”
De acordo com ela, em seguida, A Febre será distribuído no Reino Unido e na França. Além disso, também vai entrar em cartaz na China, mas as datas ainda não foram definidas devido a pandemia.
Perguntada sobre novos projetos, Maya afirma que esse é um momento de desmonte da cultura e das políticas públicas para o cinema. “Acredito que vamos precisar nos reinventar se quisermos continuar filmando. Eu venho trabalhando em alguns projetos menores que pretendo realizar com equipes muito reduzidas e com poucos recursos.”
Ela também revelou que está escrevendo o argumento de um próximo longa de ficção, que provavelmente se passará no sul do Brasil, mas destacou que ainda não há perspectiva de como alavancar recursos para iniciar as filmagens.
Você chegou até aqui e ainda não assistiu A Febre? Está esperando o quê? Corre!
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Bora dar uma conferida na sinopse?
Justino (Regis Myrupu), um indígena Desana de 45 anos, trabalha como vigilante do porto de cargas de Manaus, no Amazonas. Enquanto sua filha Vanessa (Rosa Peixoto), trabalha em um posto de saúde e se prepara para estudar medicina em Brasília.
No momento em que Vanessa tenta lidar com a indecisão entre seguir seu sonho e deixar seu pai sozinho, Justino é tomado por uma febre misteriosa que o leva de volta a sua aldeia, de onde partiu vinte anos atrás.
Assista ao trailer abaixo:
Espero que os títulos tenham sido bons trocadilhos apreciativos. E, dessa vez, A Febre não se referia à doença e sim ao que esse longa representa para o nosso cinema brasileiro: uma verdadeira febre, no melhor dos sentidos.
Mas e você? Já assistiu A Febre? Então nos conte o que achou no Twitter, Instagram e Facebook!
*Crédito da foto de destaque: Felippe Mussel