Victoria Santa Cruz foi uma figura de destaque em vários cenários da cultura e fez história no feminismo preto, além de escrever Me Gritaron Negra
O Latinizei de hoje traz para o centro dos holofotes a figura imperiosa de Victoria Santa Cruz, uma mulher preta, nascida e criada no Peru, e responsável por abalar toda uma cena cultural e reconhecida pelo seu cabelo black power que exibia como uma coroa.
Victoria Santa Cruz foi poeta, estilista, coreógrafa e folclorista, ativista dos direitos femininos e forte na luta pelos direitos de igualdade racial e educação. Ela também é a primeira peruana da nossa lista no Latinizei, e como responsável por abrir as portas desse país tão histórico, chega ao quadro quebrando tudo que se pode esperar de uma mulher latina, e conquista espaço em nossos corações.
Partiu conversar sobre esse ícone peruano!
Arte que vem de berço
Victoria Eugenia Santa Cruz Gamarra nasceu em La Victoria, em Lima, no Peru, no dia 27 de outubro de 1922. Vindo de família artista, com pai dramaturgo e mãe dançarina, conhecida de forma artística como Victoria Santa Cruz, a latina de hoje encontrou seu lugar de fala também nas artes e muito cedo conheceu os palcos pelo olhar da família e pelo seu próprio.
Além de seus pais, sua família moldou – por gerações e gerações -, a visão da cultura afroperuana, reunindo membros da família que atuavam como poetas, pintores e músicos.
O avô materno de Victoria Santa Cruz era um ator famoso, e sua mãe conseguiu reconhecimento como dançarina de marinera, uma dança típica do Peru, que reúne origens africanas, indígenas e espanholas. Foi nessa época que Victoria começou a apreciar a dança, e passou a ver na arte do movimento do corpo uma forma de liberdade e expressão social, em especial para as culturas africanas, que sempre foram marginalizadas e feridas pelos pensamentos colonizadores.
O trauma causado na infância, quando uma menina branca se recusou a brincar com ela, empurrou Victoria Santa Cruz ainda mais para o cenário artístico e cultural, e foi nessa fase que ela buscou inspiração para seu poema mais famoso, do qual vamos falar logo mais. Mas vale lembrar que foi na sua infância que Victoria começou a se enxergar como um corpo destoante de seu grupo de amigos, e isso a puxou para as matrizes de sua pele, além de estimular nela o conceito e o entendimento de uma solidão exclusiva de mulheres pretas, que nem sempre é no sentido romântico.
Cumanana
No ano de 1958, Victoria Santa Cruz se uniu ao irmão mais novo, Nicomedes Santa Cruz, e formou o grupo de teatro Cumanana.
A companhia foi a primeira de teatro negro no Peru, e tinha como foco principal (em seus primeiros anos) a recuperação do repertório cultural de culturas africanas. A ideia era dar espaço para a comunidade preta e jovem um lugar onde encontrar sua ancestralidade e suas raízes, onde pudessem se expressar de forma livre por meio do teatro e revitalizar a cultura preta.
O Peru também foi um país marcado pela escravidão preta, por colonização exploratória (no caso deles pela Espanha) e pela desumanização e afastamento dos povos africanos de suas origens, então os irmãos Santa Cruz se voltaram contra o padrão branco e lutaram contra a desigualdade social e cultural, mas era Victoria quem mais se destacava entre os dois.
Defensora ferrenha da necessidade de espaços que elevassem a autoestima negra, Victoria Santa Cruz ensinava sobre a experiência de ser preta no Peru. Além de reforçar a capacidade feminina em espaços de liderança e se destacar como uma das primeiras mulheres pretas latino-americanas a focar em seus conhecimentos em tantas áreas diferentes que se complementavam.
Aliás, vamos ressaltar que o nome Cumanana não foi uma escolha aleatória. Esse é nome de um tipo de música originário do Peru, e em 2004 o estilo musical Cumanana foi declarado como patrimônio cultural da nação, o que apenas reforça que escolher esse nome para a companhia de teatro era uma premonição da importância que o país veria futuramente nesse estilo tão pessoal de criar arte.
Paris e Peru
Depois do grande sucesso que a sua companhia de teatro alcançou, Victoria Santa Cruz conseguiu uma bolsa de estudos para ir à França, aprender design de figurino e direção coreográfica em Paris, para passar adiante os seus conhecimentos e enriquecer mais a cultura local.
Voltando quase no fim dos anos 1960, Victoria se estabeleceu na capital peruana de vez e voltou a se reunir com parte do elenco original do grupo Cumanana, então formou o grupo Teatro y Danzas Negras del Perú (por volta de 1967, mais especificamente), focada em unir apenas pessoas pretas, tal como seu primeiro projeto teatral.
A única exigência de Victoria Santa Cruz era que seus alunos/companheiros de elenco tivessem ritmo refinado, que fossem capazes de acompanhar sua batuta e que seguissem assim, amando essa arte.
A ideia era usar a arte como um meio de comunicação, e cantar, dançar e tocar eram um rio limpo e fluido para Victoria Santa Cruz, e ela queria seguir nadando nessas águas, e junto consigo queria levar histórias e corpos pretos, e femininos.
“Ao transformar o que se faz e se transformar junto, o artesão se torna um artesão, preparando seu caminho e, longe de ficar preso na forma, o que é apenas um meio, conseguirá adquirir o nível de consciência que transforma – e preserva -, no homem de conhecimento, o artista”, era o que afirmava sobre seus métodos de ensino.
Ativista preta
Victoria Santa Cruz usava o espaço da sua companhia de teatro para ensinar seus alunos não só arte como cultura africana, além de reforçar que corpos e consciências pretas deveriam se unir em um só ser, unificando a história da África dentro do conceito peruano.
“O negro, para encontrar um lugar, precisa ter consciência de como ser útil para si e para a sociedade. Deve conhecer seu próprio valor como ser humano, com direitos e deveres que lhe convém por ter nascido assim. Para se achar, a arte é o meio mais correto”, foi o que Victoria afirmou sobre sua forma de passar o entendimento artístico dentro da cena preta local.
Foi, então, entre os anos 1973 e 1982, que Victoria Santa Cruz assumiu a direção do Conjunto Nacional de Folklore, tomando partido no desenvolvimento de pesquisas e direção de repertórios folclóricos, unindo danças tradicionais e cultura africana em projetos lindos, o que carregou o nome da nova companhia que dirigia, e o seu próprio, para o mundo.
Nessa experiência, Victoria Santa Cruz viajou por todo o Peru, reunindo nomes de mestres da cultura tradicional de seu povo, para transformar músicas e danças africanas em algo mais, de acordo com cada território porque passou.
Escritora e poeta
Victoria Santa Cruz colecionou prêmios e convites para trabalhos únicos, fez parte de diversas companhias de teatro e de dança e trabalhou ao lado de Peter Brook, o famoso diretor de teatro.
Isso tudo a levou para os Estados Unidos, onde trabalhou como professora catedrática na Universidade Carnegie Mellon entre 1982 e 1999. Por lá ela aumentou seu repertório e treinou ainda mais seu método de ritmo, e uniu todas essas experiências e reflexões sobre arte no livro Ritmo: el eterno organizador.
Apesar de ser pouco reconhecida, a obra é forte e empodera raciocínios culturais sobre a origem preta, aumenta o interesse pela vivência latino-americana de Victoria como mulher preta e estabelece conceitos sobre a arte.
Mas essa não tinha sido a primeira experiência de Victoria Santa Cruz com a arte da escrita!
Autora do poema Me Gritaron Negra, Victoria Santa Cruz expõe o racismo e a descoberta da pele retinta em uma sociedade feita para agradar e abraçar corpos brancos e masculinos.
O poema relata uma experiência traumática vivida por Victoria Santa Cruz ainda na infância, quando uma colega a acusou de ser preta, e como isso a fez notar o impacto da sua ancestralidade africana. Os versos criticam, de forma até um pouco violenta, as questões sociais e políticas que afugentam e excluem os povos pretos na América Latina, especialmente se forem corpos femininos.
Esse poema é visceral, e fala muito sobre a Victoria criança, que sentiu o peso do mundo nas costas, mas com a experiência da dor racista de uma Victoria já adulta, e faz muito mais sentido ser lembrado como um momento da sua maturidade do que da sua infância traumatizada por um país colonizado e desumano.
Na história
Victoria Santa Cruz resiste como parte de uma cultura latina que é esquecida e abandonada, e prova que existe mais na força feminina latino-americana do que se pode imaginar a princípio.
Em 2014, depois de uma vida inteira dedicada ao estudo dos corpos e da dança, de muito ativismo em prol dos povos pretos e da cultura afroperuana, Victoria Santa Cruz faleceu, no dia 30 de agosto por problemas de saúde vindos da idade avançada. Ela tinha 91 anos e já de volta dos Estados Unidos, morava na capital peruana, e vivia longe das grandes demonstrações públicas de arte.
Seu nome resiste como porta voz de mulheres pretas e latino-americanas, como um símbolo de força e conquistas, muito pelo seu ativismo em relação a sua cultura e ao seu sexo, afinal, Victoria Santa Cruz era orgulhosa de ser mulher e se garantia como força e destaque onde quer que estivesse, mesmo ainda na sua juventude.
Tentar resgatar a memória e a biografia desse ícone ainda é um trabalho em processo e merece toda a atenção do mundo, além da óbvia urgência. Deixar que sua história se apague, é como deixar toda uma cultura morrer lentamente.
Agora que já te contamos um pouco mais sobre esse símbolo de força feminina, preta e latina, queremos saber se você já tinha ouvido falar sobre Victoria Santa Cruz. Vamos conversar nas nossas redes sociais: Twitter, Insta e Face. E acompanhe tudo sobre o universo do entretenimento!.
*Crédito da foto de destaque: divulgação