Descubra como a quadrinista mineira une sua vivência pessoal e herança cultural em obras que tocam o coração e desafiam as convenções artísticas
Já parou para admirar uma ilustração e se deixou levar pela emoção que vem do peso cultural e da atenção aos detalhes? Um ótimo exemplo disso é a Ing Lee e suas obras impressionantes.
Formada em Artes Visuais pela UFMG, Ing Lee é uma artista plástica, ilustradora e quadrinista mineira surda oralizada que vem ganhando destaque no cenário indie dos quadrinhos brasileiros desde 2018. O que mais me encanta em seu trabalho é como ela brinca com contrastes e justaposições de cores, transformando cada página em um convite irresistível para os leitores. Sua sensibilidade ao explorar temas como memória e identidade, especialmente no contexto do Leste Asiático, faz de cada quadrinho uma experiência emocional única.
Nascida de ascendência norte-coreana e sem uma comunidade para se conectar plenamente, Ing está em uma jornada de resgate de suas raízes e da rica história político-cultural das Coreias. Suas criações falam sobre memórias e identidades, trazendo referências que vão desde as artes de propaganda até o cinema coreano. No ano passado, ela lançou histórias em quadrinhos sobre os 60 anos da imigração coreana no Brasil e João Pé-de-Feijão, uma obra que retrata sua relação com o irmão caçula autista.
Em entrevista ao Entretetizei, a artista incrível contou um pouco mais sobre seu processo criativo e suas fontes de inspiração. Confira:
Entretetizei: Quando você percebeu que queria seguir carreira nas artes visuais? Como foi o começo no cenário indie dos quadrinhos?
Ing Lee: Foi de última hora, após fazer um ano de cursinho cogitando prestar para Medicina. Ao final do cursinho, gostei tanto da didática dos professores que achei que seria uma boa ideia tentar uma licenciatura e, no caso, tentei Artes Visuais em algumas faculdades de Belo Horizonte. Acabei passando, mas não fui pra licenciatura porque lá percebi que não gostava muito das matérias (hehe). Entrei em 2014 no curso de Artes Visuais da UFMG e fiz a habilitação em Desenho.
Em 2016, comecei a participar de feiras gráficas da minha cidade (BH) puramente por curiosidade e vontade de publicar uma zine em risografia, e fui bastante surpreendida. Gostei muito e passei a me inscrever para diversas feiras em outras cidades, principalmente em São Paulo, onde eu também acabei fazendo diversas amizades por conta dos grupos de militância asiático-brasileira que estavam começando a fervilhar nessa mesma época. Co-fundei o Selo Pólvora em 2018, coletivo asiático-brasileiro feminista que contava com membros mulheres e pessoas não-binárias de diversas ascendências asiáticas, desde coreana, chinesa, japonesa a sírio-libanesa.
Neste mesmo ano, participei de uma residência artística bem breve, chamada Laboratório de Quadrinhos Potenciais, organizada pelo FIQ, em Belo Horizonte, junto de outros artistas locais.
Acredito que ter participado deste programa me deu um impulso muito grande para começar a criar HQs e desde então não parei. Cheguei a fazer publicações coletivas e a minha primeira obra de HQ solo foi publicada pela revista Piauí, em novembro de 2019.
E: Como sua vivência como surda oralizada influencia suas escolhas artísticas e a forma como você conta histórias e transmite emoções nas suas obras?
I: Hmm, não sei dizer direito isso. Mas tenho uma grande preocupação com a questão de acessibilidade e inclusão nesse meio, então acredito que se canaliza mais pela forma como tento transmitir meu conhecimento adquirido e formar novos profissionais na área através de meus cursos, workshops e palestras.
E: Como as culturas brasileira e coreana se misturam na sua arte?
I: A parte coreana, pra mim, por muito tempo se definia pela falta. Fui criada longe de minha comunidade e raízes, e isso me deixava sempre em conflito, de modo que eu tentava buscar entender melhor minha ancestralidade procurando mais referências coreanas, seja na arte ou de forma mais geral, em outras expressões culturais como cinema e também entender sua história, sociedade, etc. Isso me trouxe a diversos coletivos asiático-brasileiros, com os quais tive trocas incríveis e enriquecedoras, e me influenciou bastante a querer continuar produzindo coisas em prol de minha comunidade — seja enquanto representação ou resgate histórico mesmo, como fiz em meu trabalho de webtiras sobre a imigração coreana no Brasil.
E: Quem são suas maiores influências? Autores, artistas, filmes, estilos… o que molda seu trabalho?
I: De artistas, Taiyo Matsumoto, Keum Suk Gendry-Kim, Asano Inio, Manshen Lo, Deb Lee, Nam June Paik, Ai Yazawa, Rutu Modan, Alison Bechdel, Hiroshi Nagai, Jee Ook, Seung Eun Kim, Yi Yang, Atsuko Nishida, Moto Hagio, Kyoko Okazaki.
De filmes, Satoshi Kon, Bong Joon-ho, Takeshi Kitano, Edward Yang, Celine Song e Sylvia Chang.
De livros, Amiga Genial, de Elena Ferrante, Coelho Maldito, de Bora Chung, Aos Prantos no Mercado, de Michelle Zauner, e Peito e Ovos, de Mieko Kawakami.
E: Você considera sua arte uma forma de ativismo? Como suas criações abordam questões de identidade, memória e resistência?
I: Acredito que sim, mas não se resume somente a isso. Minha arte reflete obviamente meus pontos de vista políticos e busco transformação por meio dela, mas também acredito que é um meio de expressão e experimentação também. Meu trabalho autoral se conecta muito com meu resgate à minha própria ancestralidade, porém não se limita a isso. Desejo abordar diversos temas que me interessem em momentos distintos.
E: Como é o processo de criar uma capa de livro, desde o briefing inicial até a versão final?
I: Geralmente sou um dos últimos passos na cadeia do livro, pois o livro já se encontra praticamente pronto, traduzido e em processo de revisão, e é nesse ponto que entro como capista. O briefing acompanha um resumo do livro e até mesmo caminhos possíveis de como retratá-lo, mas, sempre que possível, busco também fazer minha leitura do título a ser ilustrado para tirar minhas próprias conclusões. Então envolve bastante leitura, estudos e testes para poder chegar no resultado final, sempre em diálogo com a direção de arte ou os editores envolvidos no projeto.
E: Como as diferentes formas de arte que você explora (ilustração, colagem, cerâmica, quadrinhos) se conectam e enriquecem seu processo criativo?
I: Acredito que cada linguagem representa momentos distintos de vida e, por mais que algumas eu nem faça mais (como a colagem), ainda são coisas que continuam presentes em meu repertório e na forma que interpreto as coisas. O pensamento da colagem transcende sua técnica e me confere um raciocínio de conectar diferentes pontos, abordagens e referências em meu trabalho. E isso acaba por enriquecer a minha produção, porque sempre vejo formas de transformar e traduzir diferentes técnicas para outra coisa nova.
Acho que considero a pesquisa algo mais importante que a técnica utilizada em si, e vejo isso como algo bastante consistente e me confere um maior amadurecimento sobre a forma como vejo as coisas.
E: O que mudou na sua visão artística depois da residência no programa Bolsa Pampulha, onde você pesquisou cerâmicas coreanas?
I: Creio que me fez pensar bastante sobre como lidar com a lentidão que a cerâmica confere em seu processo, diferente da instantaneidade do desenho digital. Para além disso, pude descobrir diversos aspectos da própria história da Coreia e conectar isso a outras produções, pois a cerâmica Celadon representa todo um período no qual ela se fez mais presente.
E: Como é o seu dia a dia de trabalho? Você segue uma rotina ou prefere deixar fluir mais livremente?
Enquanto freelancer que trabalha full-time com trabalhos de ilustração e congêneres, costuma depender da demanda da semana. Gosto de me planejar semanalmente e não só por dia, e daí vai depender de variáveis como prazo, etapa de produção e afins. A área de criação é muito mais organizada e rotineira do que parece, a ponto de eu até saber identificar quando parar de produzir num dia porque percebo que cheguei num ponto de estagnação, onde fico tão bitolada e saturada com um trabalho, que preciso de um respiro — que pode ser simplesmente uma boa noite de sono e acordar com a cabeça mais leve no dia seguinte. Isso vale tanto para ilustrações quanto quadrinhos, tudo demanda planejamento e organização para surgir, porque se eu depender de apenas deixar as coisas fluírem naturalmente vou acabar procrastinando e perdendo o foco.
Sei quais períodos sou mais produtiva, geralmente à tarde, então costumo deixar as manhãs para começar o dia de forma mais lenta e fazer coisas de casa ou me exercitar, responder e-mails…. Daí vou seguindo até o começo da noite e descanso. Já fui de virar noites, porém, no fim, mais me desgastava do que ajudava. Então me impor horários mais comerciais também me confere não só uma rotina mais saudável como também uma postura de seriedade com meus clientes.
E: Qual foi a inspiração para criar Ao meu eu criança? O que você queria passar com essa história?
I: Ao Meu Eu Criança é uma história que se passa em dois tempos, os personagens crianças e depois já adultos, e o que conecta estes dois períodos tão distintos é a nostalgia, com máquinas de venda que tinham bonecos de Pokémon (geralmente falsificados). É uma HQ curtinha, onde foquei mais nessa experimentação gráfica do formato de zine impresso em risografia e me propus a desenhar com a mão esquerda em algumas partes, para resgatar esse desenho mais infantil, dado que sou destra.
Meu objetivo era uma ode nostálgica que se conecta não somente com a minha infância como também com a de muitas outras pessoas que viveram os anos 90 e 2000 enquanto crianças.
E: João Pé-de-feijão revela muito sobre seu relacionamento com seu irmão caçula autista. Como foi transformar essa experiência pessoal em quadrinhos?
I: Foi algo sempre muito incentivado pela minha mãe. Ela quem me deu a ideia de fazer uma HQ em torno da história do meu irmão caçula, João, havia um bom tempo, mas decidi começar quando percebi que havia chegado a hora de me mudar para São Paulo e deixar minha família, que mora em Belo Horizonte. Então essa série surgiu justamente de um desejo de me despedir dessa proximidade cotidiana que eu não teria mais com meu irmãozinho após a mudança, como uma forma de homenagem às memórias que construímos juntos.
E: Que dica você daria para artistas que estão começando, especialmente no cenário independente?
I: Eu diria que trabalhar com arte pode ser uma jornada solitária e difícil, então sempre que possível, busquem formas de trazer outras pessoas e até mesmo fazer parte de coletivos, pois creio que não devemos nos fechar numa bolha no nosso próprio mundinho e a arte não surge do vácuo, mas sim é um fruto de um indivíduo que convive em sociedade. Por meio das trocas e alianças, podemos fortalecer muito o nosso trabalho e fazer com que ele se comunique mais com as pessoas.
E: Você tem sido muito comentada por ilustrar capas de livros como Amêndoas, que até ganhou um cenário especial na Bienal de 2024. Como tem sido essa experiência de ver seu trabalho ganhando tanta visibilidade?
I: Tem sido realmente muito gratificante me dar conta do meu crescimento profissional nesses últimos tempos e sempre acredito que o sucesso é algo que deve ser partilhado. Então, sempre que possível, espero trazer esperança e abrir portas para outras pessoas como eu e de outros grupos minoritários neste mercado, que, infelizmente, segue sendo tão excludente e de difícil inserção.
E: De todas as capas que você já ilustrou, qual é a sua preferida? E qual livro adoraria ilustrar no futuro?
Puxa, tem tantas… é que são livros sempre tão diferentes uns dos outros e cada um representa algo diferente pra mim, sabe? Mas se fosse escolher somente uma, eu diria que Aos Prantos no Mercado segue sendo minha favorita não somente por ser um dos meus livros favoritos, como também foi um dos primeiros livros que ilustrei a capa e sinto que eles marcaram muito a minha carreira.
Adoraria ilustrar algum livro da Elena Ferrante um dia, principalmente a tetralogia napolitana, da Han Kang e, caso algum dia venha ao Brasil, At the End of the Matinee de Keiichiro Hirano.
E: O que vem por aí? Pode dar uma pista dos próximos projetos?
I: Irei lançar o quadrinho João Pé-de-Feijão no ano que vem pela VR Editora, o meu primeiro livro com uma editora!!!
E: Tem algum tema ou história que você ainda não explorou, mas gostaria muito de abordar?
I: Enquanto quadrinista, gostaria muito de fazer algum projeto de apocalipse zumbi e terror psicológico. O segundo, inclusive, é outro projeto que tenho na manga e ainda preciso começar a roteirizar, mas já consegui uma parceria para a escrita e esperamos começar ainda este ano.
E: Você acabou de ganhar o prêmio Jovens Talentos na Bienal do Livro 2024. Como foi isso? O que esperar da sua ida à feira de Frankfurt?
Fiquei incrédula na hora que o prêmio foi anunciado, tanto que nem preparei discurso nenhum… mas considero uma grande vitória não somente para mim, como também para a classe dos trabalhadores criativos do mercado editorial. Em tempos tão estranhos onde esse tipo de trabalho anda sendo precarizado e substituído pela antiética inteligência artificial, como apontei em meu pitching defendendo minha candidatura entre os finalistas do prêmio para o júri. Espero que cada vez mais capistas ganhem espaço e sejam devidamente valorizados.
Com o prêmio, ganhei uma ida à Feira do Livro de Frankfurt, na Alemanha, que foi uma viagem incrível! Ainda estou digerindo tudo o que aconteceu nesse período, mas posso dizer que sinto que voltei outra pessoa. Tive trocas maravilhosas e conheci muitas pessoas incríveis do mercado que, embora tenham atuações e backgrounds tão diferentes do meu, ainda nos conectamos muito e espero seguir alimentando aqui esses laços que conquistei por lá.
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Texto revisado por Cristiane Amarante