Imagem: divulgação/Entretetizei

Hallyu: a onda que ofusca escândalos e crimes sexuais na Coreia do Sul

 Entre idols intocáveis e um sistema que silencia vítimas, a Hallyu revela um lado sombrio que muitos preferem ignorar

Nos últimos anos, a Coreia do Sul virou a queridinha do mundo com o fenômeno da Hallyu, ou onda coreana. Quem nunca se pegou cantando Gangnam Style do Psy ou assistindo a um K-drama romântico no streaming? BTS, BLACKPINK, dramas como Descendants of the Sun (2016), skincare milagrosa e a cozinha coreana repleta de sabores exóticos… Tudo parece perfeito no K-world, certo? Só que nem tudo é tão brilhante quanto parece.

O que muita gente não sabe (ou prefere ignorar) é que, por trás de todo esse brilho, a Coreia do Sul esconde um lado sombrio, cheio de escândalos de machismo, abuso sexual e misoginia. E parece que a cultura pop está funcionando como um tipo de cortina que oculta esses problemas graves. A indústria do entretenimento sul-coreano investe pesado em estratégias de marketing que destacam a perfeição e a disciplina de seus idols, enquanto tenta esconder a sujeira debaixo do tapete. Mas até quando isso vai funcionar?

A questão é que a imagem projetada pelo K-pop e pelos K-dramas frequentemente contrasta com a realidade vivida por muitas mulheres no país. Por trás das câmeras e dos palcos, há um sistema que silencia as vítimas, protege os agressores e perpetua uma cultura onde a reputação vale mais que a dignidade humana. Essa dualidade é preocupante, pois enquanto o país se vende como moderno e progressista, os escândalos e a misoginia continuam a prosperar nas sombras.

O escândalo do Burning Sun: o show de horrores da indústria do entretenimento

Vamos começar falando sobre um dos maiores escândalos que abalaram a indústria do K-pop: o caso Burning Sun. Em 2019, uma boate de luxo em Seul, chamada Burning Sun, foi exposta como o epicentro de uma rede de abuso sexual, tráfico de drogas e corrupção policial. E o mais chocante? Um dos envolvidos era Seungri, ex-membro do BIGBANG, um dos maiores grupos de K-pop de todos os tempos.

As investigações revelaram uma rede de abusos sistemáticos, onde mulheres eram drogadas e abusadas sexualmente, com vídeos compartilhados em grupos de bate-papo privados entre celebridades. Seungri, inicialmente, foi retratado como o “garoto bom” que só administrava a boate, mas logo ficou claro que ele estava envolvido em atividades muito mais obscuras.

Enquanto o caso tomava conta das manchetes, fãs e empresas de entretenimento coreanas pareciam mais preocupados em salvar a imagem da indústria do que em discutir o problema. A hipocrisia ficou evidente: a preocupação com a imagem superou a necessidade de justiça.

Além de Seungri, outros nomes da indústria também foram revelados como cúmplices. O cantor Jung Joon-young, por exemplo, foi condenado por filmar e compartilhar vídeos sem consentimento de suas agressões sexuais. Essas revelações abalaram a confiança do público na integridade dos artistas que tanto admiravam.

No entanto, a resposta da indústria foi superficial, abafando as notícias com comunicados públicos pedindo desculpas e promessas vazias de mudanças, enquanto as vítimas continuavam a lutar por justiça em um sistema que favorece os agressores.

Hallyu
Foto: reprodução/KoreaIn
Cultura do machismo e a invisibilização das vítimas

A sociedade sul-coreana ainda é fortemente patriarcal, e isso se reflete na forma como casos de abuso são tratados. Apesar da Coreia do Sul ter um dos maiores índices de educação do mundo, o machismo é enraizado, e a cultura do “colete” é quase intocável. A própria palavra han, que representa o espírito de resiliência coreana, às vezes é mal interpretada para justificar o sofrimento das mulheres. Enquanto os homens, especialmente os famosos, recebem perdão e chances de redenção, as mulheres são frequentemente silenciadas e culpabilizadas.

O mais assustador é que, apesar de todas essas histórias horríveis, o país continua a se promover como um exemplo brilhante de cultura moderna. Enquanto o governo investe pesado em promover a Hallyu no exterior, internamente as mulheres continuam a lutar por direitos básicos e proteção contra abusos.

A mídia também desempenha um papel fundamental na perpetuação desse ciclo, muitas vezes ignorando os relatos das vítimas ou cobrindo os casos de maneira sensacionalista, sem um olhar empático. O foco nas carreiras destruídas dos artistas envolvidos é uma tentativa de desviar a atenção do verdadeiro problema: a normalização da violência contra a mulher e a ausência de responsabilização adequada. Esse padrão deixa claro que, para a sociedade coreana, o lucro e a reputação vêm antes da justiça.

O efeito oppa e a idealização dos idols 

Outro ponto é como a indústria de entretenimento se beneficia da idealização de seus idols, que são frequentemente tratados como modelos perfeitos de moralidade e conduta. A maioria das empresas de entretenimento coloca seus artistas em uma bolha, escondendo suas falhas e protegendo sua imagem pública a qualquer custo. Quem nunca ouviu falar do efeito oppa, aquela idealização dos idols masculinos como perfeitos e intocáveis? Eles são vistos como príncipes encantados, sem defeitos, o que cria um muro de proteção em torno de seus comportamentos abusivos.

Quando surge uma acusação contra algum idol, as reações dos fãs são previsíveis: um exército de defensores que acusam as vítimas de estarem mentindo ou buscando atenção. Um exemplo é o caso de Kim Seon-ho, estrela de Hometown Cha-Cha-Cha (2021), que foi acusado de pressionar sua ex-namorada a fazer um aborto. Apesar do escândalo, o ator continua a ter uma base de fãs leal, e as discussões sobre a gravidade do ocorrido rapidamente se dissiparam. A indústria responde apenas com um breve hiato, antes que o artista retorne à vida pública como se nada tivesse acontecido.

Esse comportamento não é apenas uma falha moral, mas uma estratégia deliberada para manter a lucratividade e a popularidade dos artistas, independentemente das acusações. A cultura de fã-clubes obcecados, que chegam a financiar campanhas publicitárias para limpar a imagem dos idols, só reforça a impunidade. Os artistas se tornam intocáveis, enquanto as vítimas enfrentam o ostracismo e a descrença. É um ciclo vicioso onde a imagem vale mais do que a verdade.

O papel das redes sociais na silenciosa aceitação dos escândalos

As redes sociais desempenham um papel ambíguo nessa história. Por um lado, são ferramentas poderosas para denunciar abusos e dar voz às vítimas; por outro, são também usadas para intimidar e desacreditar essas mesmas pessoas. Quando surgem denúncias, as reações online são instantâneas: ataques às vítimas, tentativas de encobrir as acusações e uma enxurrada de fanwars onde a preocupação principal é proteger a imagem do idol favorito.

A internet vira um campo de batalha onde as vítimas raramente têm vez. As campanhas de cancelamento, que deveriam servir para responsabilizar agressores, frequentemente são mal direcionadas ou distorcidas, mirando as pessoas erradas. E isso perpetua uma cultura de silêncio e conivência, onde a reputação de um artista ou de uma empresa é vista como mais importante do que a justiça.

Cultura de cancelamento seletivo: protegendo os idols e culpando as vítimas

Outro aspecto problemático é a cultura de cancelamento seletivo que impera na indústria. Enquanto alguns idols caem em desgraça por motivos aparentemente pequenos — como fumar ou namorar secretamente —, outros continuam com suas carreiras intactas, mesmo após acusações graves. É um ciclo de hipocrisia: o que vale é a aparência de perfeição, não a conduta moral verdadeira.

Veja o caso de Yoochun, ex-membro do JYJ e TVXQ, acusado de múltiplos casos de agressão sexual. Mesmo com provas e testemunhos consistentes, ele foi capaz de continuar sua carreira, reconquistando alguns fãs com pedidos de desculpas vazios e promessas de mudança.

Tudo isso enquanto as vítimas eram vilanizadas, recebendo ameaças e ataques pessoais.

Mudanças em andamento, mas lentas demais!

Felizmente, estamos vendo um movimento crescente de mulheres e ativistas sul-coreanas que estão dizendo basta”. O movimento #MeToo, que explodiu na Coreia em 2018, revelou uma série de abusos cometidos por figuras poderosas do entretenimento, política e negócios. Embora a resistência e a negação ainda sejam fortes, as vozes das vítimas estão se tornando mais audíveis. A questão é: será que essas mudanças são rápidas e profundas o suficiente?

Existem esforços legais para combater o abuso e a misoginia, como a Lei do Pornô de Espionagem, que visa combater a disseminação de vídeos íntimos sem consentimento — um problema gigantesco na Coreia, onde câmeras escondidas em banheiros públicos e hotéis se tornaram uma epidemia. Contudo, as leis, muitas vezes, são frouxas e a implementação falha, resultando em sentenças leves e uma sensação de impunidade.

A responsabilidade é coletiva: mídia, fãs e artistas

Não podemos ignorar que a mudança começa com a responsabilidade coletiva. A mídia precisa parar de glorificar a cultura de idols e começar a falar sobre esses problemas com a seriedade que merecem. Os fãs, por sua vez, têm o poder de exigir padrões mais altos de seus artistas favoritos e apoiar as vítimas, em vez de apenas proteger seus oppas a qualquer custo.

Precisamos encarar o fato de que a cultura Hallyu, com todo o seu brilho e encanto, também tem um lado sombrio que precisa ser discutido e combatido. É fundamental que a Coreia do Sul, assim como seus fãs ao redor do mundo, olhem além da tela do celular e se perguntem o que realmente importa: a imagem perfeita ou a luta por um mundo mais justo e seguro para todos?

Enquanto a mudança não acontece, continuaremos a ver a cultura Hallyu cobrir seus problemas com glitter e batom vermelho, deixando para trás uma trilha de vítimas esquecidas, que merecem ser ouvidas. Afinal, a verdadeira revolução cultural não acontece com likes e views, mas com a coragem de enfrentar as verdades inconvenientes.

 

Qual sua opinião sobre isso? Conte pra gente e nos siga nas redes sociais do Entretetizei — Facebook, Instagram e X — para mais novidades sobre a cultura asiática.

Leia também: Artigo|Kim Jiyoung, Nascida em 1982 e o movimento feminista 4B

 

Texto revisado por Angela Maziero Santana

plugins premium WordPress

Nós usamos cookies e outras tecnologias semelhantes para melhorar a sua experiência em nossos serviços, personalizar publicidade e recomendar conteúdo de seu interesse. Ao utilizar nossos serviços, você concorda com tal monitoramento. Acesse nossa política de privacidade atualizada e nossos termos de uso e qualquer dúvida fique à vontade para nos perguntar!