Domitila Barrios de Chungara foi um ícone das mulheres latino-americanas e ensinava, nas ruas, sobre senso político
Domitila Barrios de Chungara foi uma mulher forte, mineradora boliviana, que educava seu povo por meio de discursos à céu aberto. E olhando de perto, notamos que estamos sempre tentando ao máximo aprender sobre política, e sempre ouvimos que é necessário ter dinheiro e condições de vida para estudar, mas a verdade é que não é bem assim.
A prova disso foi essa mulher apaixonada por seus ideais de vida, ciente da força bruta que os operários das minas tinham nas mãos, e insatisfeita com a visibilidade social e desigualdade do seu país.
Para aprender sobre política, desigualdade e lutas contra ditaduras, temos que passar pela história de Domitila Barrios de Chungara, que foi uma grande voz – na Bolívia e no mundo – contra a ditadura e a opressão.
Nascida no machismo
Não é preciso relembrar que vivemos em um mundo completamente machista e problemático, cheio de invisibilidade e crueldade; logo, não é preciso recobrar a memória sobre o cenário mundial em 1937, em que ser mulher era um tipo de condenação social. E foi nesse cenário machista e maléfico para a essência do feminino que nasceu Domitila Barrios de Chungara, no dia 7 de maio, com descendência indígena fervendo em seu sangue.
A Bolívia dos anos 1930 pregava a ideia de que mulheres não precisavam aprender a ler e a escrever, porque só serviam para ficar em casa, e não era preciso ser estudada para passar a vida atrás de um fogão. A sorte da protagonista do Latinizei se hoje foi seu pai: um camponês que era contra as ideias sexistas de seu tempo.
O pai de Domitila era à favor da filha estudar, e desde cedo a incentivou aprender sobre o que lhe interessasse, e pregava para ela que: “As mulheres podem fazer as mesmas coisas que os homens”.
Foi também com seu pai que a história de Domitila Barrios de Chungara começou nas minas, já que ele viu na profissão de mineiro uma forma de melhorar um pouco a vida, se comparado com os trabalhos no campo. Especialmente porque quando ainda era criança, a mãe de Domitila faleceu, e por consequência disso, ela se tornou responsável pelas irmãs mais novas, enquanto o pai ia e vinha das minas.
Fundadora do Comitê de Donas de Casa
Domitila Barrios de Chungara começou a vida cedo, e por isso, via nas minas um problema maior do que o que se via na superfície. Como filha e esposa de trabalhadores de minas, Domitila começou a se envolver nos problemas das condições de trabalho dos mineiros locais.
Mas é preciso lembrar que isso aconteceu por volta do fim dos anos 1950 e início de 1960, ou seja, no início da vida adulta dela, e ainda era incomum – e até absurdo – o envolvimento de mulheres em assuntos considerados masculinos. Foi com ela que as coisas começaram a mudar, porque Domitila não se intimidava com pouca coisa, e estava sempre disposta a revolucionar os cenários em que via injustiças acontecendo.
Foi em 1961, já cansada de ver o peso dos trabalhos nas minas pensando sobre si e sua família, que Domitila Barrios de Chungara, que tinha proximidade familiar com a Mina Siglo XX, se juntou a um grupo de mulheres que estavam igualmente frustradas e, juntas, elas começaram a ganhar voz e fundaram o Comitê de Donas de Casa. O comitê feminino teve suporte do sindicato e apoio da Central Operária Boliviana,
e o seu foco era melhorar as condições de trabalho nas minas, diminuir as cargas de horário e aumentar os salários, oferecendo poder de compra para que os mineiros e suas famílias pudessem, pelo menos, comer de forma mais digna.
As chamas de uma mãe
Por volta de 1967, quando René Barrientos estava na presidência da Bolívia, houve uma grande greve trabalhista nas minas e os operários se recusavam a seguir com os trabalhos pesados. Para conter a crise, o governo escolheu usar as armas e o presidente permitiu o envolvimento do exército na greve, o que gerou massacres em Catavi e Lalagua.
Foi então que houve o primeiro baque direto entre Domitila Barrios de Chungara e as autoridades bolivianas, porque no meio da confusão ela foi presa e levada para ser torturada. Domitila estava grávida, e por conta das crueldades sofridas pelos militares, perdeu seu bebê.
Apesar de não sabermos muito sobre essa época de Domitila Barrios de Chungara na prisão, podemos deduzir o que houve por trás das paredes, e isso já é o bastante para nos gerar inconformidade e revolta. Nitidamente esse também foi o sentimento que ela mesma sentiu, e seu sentimento de infelicidade em relação à política bolinava cresceu, dessa vez na voz de uma mãe que tinha sido roubada do dom da vida.
Nessa época, os discursos de Domitila ficaram mais fortes e impactantes, cansados – e agora diretamente feridos – das condições de trabalho e das humilhações, além da constante luta contra a pobreza e da raiva contra o capitalismo.
E aqui nós abrimos uma lembrança cruel de que: Domitila Barrios de Chungara teria sido uma pessoa com muito o que debater com Zuzu Angel, a brasileira que mudou o cenário da moda nacional e se impôs contra um governo ditatorial por causa de seu filho morto pelas mãos dos militares.
A oportunidade na ONU
No ano de 1975, Domitila Barrios de Chungara foi convidada a representar os trabalhadores da Bolívia na Conferência Mundial das Mulheres.
O evento era encabeçado pela ONU e estava sendo realizado no México, prometendo debater sobre as condições de vida das camponesas e donas de casa em condições de pobreza, mas o evento se provou um fiasco em relação às suas promessas, já que era um lugar que reunia acadêmicas e estudiosas das sociedades. Domitila chegou a afirmar que fez o seu papel em denunciar as condições do povo boliviano, mas que não ficou empolgada com o que viu no evento, porque ele parecia exclusivo demais para realmente se importar com as condições de vida de um povo tão humilde.
Foi nessa conferência que Domitila conheceu a acadêmica brasileira Moema Viezzer, que viu na vida da boliviana muito a se usar para debater os problemas sociais, e com diversas entrevistas que fez com Domitila, conseguiu escrever o livro Se me Deixam Falar – Testemunho de Domitila, uma Mulher das Minas da Bolívia.
A história dos trabalhadores catapultou Domitila Barrios de Chungara para o mundo, com o livro contando a sua história e denunciando as condições de vida na Bolívia, enfrentados pelos trabalhadores e suas famílias, sendo traduzido para mais de 10 idiomas e vendendo milhares de exemplares.
A junção entre o discurso que calou a todos na conferência e o livro que Moema Viezzer escreveu sobre Domitila, fez com que as mulheres bolivianas que sofriam com as minas e seus trabalhos pesados e ingratos fossem ouvidos, assim como a violência do governo contra essas pessoas mais humildes fosse denunciada com mais impacto e relevância.
O feminismo que podia ter
Sabemos que o feminismo ainda é muito dividido e que somos constantemente jogadas umas contra as outras, e que o movimento feminista continua dividido entre o feminismo branco, o feminismo preto e o feminismo indígena, além de ter o feminismo das mulheres com deficiência.
Na época de Domitila Barrios de Chungara o problema era o mesmo!
A mais forte afirmação de Domitila era que “sem as mulheres, a revolução fica pela metade”.
Nem é preciso dizer que o feminismo estava ali, enraizado nos conceitos de Domitila Barrios de Chungara. E para fortalecer ainda mais essa informação, lembramos que teve ainda a greve do natal de 1978.
Ainda mais revoltada pelo trabalho do marido que o impedia de lutar por si mesmo por culpa da exaustão do trabalho pesado, Domitila tomou coragem e se uniu a mais quatro mulheres e seus filhos, e foram até La Paz para lutar contra as condições de trabalho que continuavam insuportáveis nas minas.
A greve de fome que esse pequeno grupo começou foi crescendo aos poucos, junto com um sacerdote local e mais pessoas que se indignavam com a situação toda, e logo toda a Bolívia se unia e fervia em protestos pacíficos contra o governo ditatorial que assolava o país.
Domitila Barrios de Chungara e suas quatro companheiras tinham prometido derrubar a ditadura, e cumpriram a promessa inicial com grande estilo. A greve de fome que começou dominou o seu país de forma bruta e então o governo recuou e caiu, e com isso ela entrava ainda mais para o círculo das mulheres fortes, e carimbava de vez o seu nome na história do feminismo mundial, e da luta contra governos ditatoriais.
O fim e o legado
Assim como a maioria dos trabalhadores das minas, Domitila faleceu de câncer de pulmão, em 2012, por causa das consequências de se passar tempo demais no ambiente em que ela cresceu e viveu.
Mesmo assim, temos que lembrar de todos os impactos que Domitila Barrios de Chungara exerceu em vida. Seu livro, publicado inicialmente na íntegra em um calhamaço de 800 páginas, ganhou destaque mundial na versão reduzida, e denunciou os massacres e a violência sofrida pelo povo boliviano, que enfrentava uma ditadura na década de 1970.
Domitila contou, em entrevista, já bem perto da sua morte, que seu sangue revolucionário vem de pai. Ele lutou na Guerra do Chaco, contra o Paraguai, e então tentou viver das minas para sustentar as filhas que tinham ficado órfãs.
Ela também chegou a comentar, enquanto tinha forças para isso, sobre a política de Evo Morales, e afirmou que via muitas melhoras começando a apontar no horizonte, já que tinha vivido e lutado com todas as suas forças contra o governo e as insuportáveis condições de sobrevivência.
Ainda em vida, Domitila Barrios de Chungara usou da sua força e conhecimento político para fundar a Escola de Formação Política.
A ideia veio quando Domitila se afastou das minas em 1986. Ela queria continuar envolvida com as questões sociais e via muito o que se fazer fora do contexto que já vinha debatendo há anos.
Foi durante as eleições na primeira metade dos anos 2000 que Domitila passou a usar seus discursos como um meio de ensino mais regrados, e na sua escola ela treinava os alunos sobre consciência de classe, diferentes abordagens políticas e história do seu país, destacando a ditadura e abordando formas de se melhorar e moldar a democracia para que exista igualdade social e união do povo.
E apesar de não termos muito mais sobre a história dela para contar, temos que refrescar a memória de que ouvir essas vozes femininas e potentes é uma tarefa importante e diária.
Quanto mais mulheres revolucionárias forem esquecidas no contexto mundial, mais a história se perde e mais somos empurradas para a obscuridade, sempre tento que revalidar nossas vozes e revitalizar o álbum de nomes de mulheres incríveis.
Agora que você já aprendeu um pouco mais sobre a história recente da Bolívia, vem conversar com a gente, nas redes sociais (Twitter, Insta e Face), sobre mulheres que mudaram os rumos das políticas locais. E não se esqueça que falamos sobre nomes femininos da América Latina que fizeram história todas as segundas, às 18 horas. No resto do tempo estamos falando sobre cultura pop latina e mundial, e não perdemos nenhum lance.
*Crédito da foto de destaque: divulgação