Conhecida como Fênix da América, Juana Inés de la Cruz foi tudo que uma mulher não poderia ser na América Latina dos anos 1600
Juana Inés de la Cruz foi uma freira por conveniência, apaixonada por poesia e escrita, feminista revolucionária e, possivelmente, a primeira mulher latina a abraçar a sexualidade de forma polêmica.
Nascida no México, Juana Inés de la Cruz sofreu com o quase completo esquecimento, mas foi apelidada de Fênix da América, não à toa, e ainda ganha o reconhecimento no círculo de escrita como primeira mulher a produzir obras escritas em língua espanhola, sendo conhecida como A Décima Musa.
É difícil escrever sobre Juana Inés de la Cruz de forma objetiva, já que estamos falando sobre os anos 1600, quando as obras escritas eram facilmente perdidas e confundidas, o que gera constante problema entre biografias daquele tempo, mas vamos tentar resumir sua biografia aqui, de forma mais objetiva possível.
Hija de la Iglesia
Batizada como Juana Inés de Asuaje y Ramírez de Çantillana, ela poderia ser reconhecida como um criolla, por ter pai espanhol e mãe latino-americana com descendência espanhola. Ao ter seu registro feito, a pequena Juana Inés já recebeu seu primeiro apelido, já que era costume na época escrever hija de la iglesia nos registros oficiais das crianças para determinar quem era criança ilegítima e quem era criança nascida de um casamento oficial e consagrado.
Existindo um relato breve autobiográfico em um livro de sua autoria, Juana Inés de la Cruz contou ao público sobre sua paixão desde nova pela escrita e sua permanente adoração pelos livros, assim como falou sobre as vezes em que se escondia na biblioteca do avô materno – enquanto morou com ele na infância -, e de como isso lhe gerava punições. Também contou como seguiu sua irmã mais velha até a escola, e lá convenceu a professora a lhe ensinar a ler e a escrever, isso com apenas três anos de idade.
Enquanto vivia com o avô, Juana Inés de la Cruz conseguiu um tutor para lhe ensinar latim e, posteriormente, escreveu um soneto lhe comparando a Arquimedes (para resumir, um matemático grego). E é nessa fase que surgem duas anedotas curiosas sobre a pequena Juana.
A primeira a coloca como uma garota que implorou para a mãe para lhe vestir de homem, tentando de tudo o possível para a convencer – de forma fracassada, óbvio -, para que assim pudesse frequentar a Universidade do México. A segunda anedota a coloca como uma criança que mutilava os cabelos sempre que cometia um erro durante as aulas, aparentemente indignada que sua cabeça fosse capaz de ter muito cabelo e pouco conhecimento. Ou seja: fluidez de gênero em uma criança que viveu onde os reis governavam a Terra, e onde mulheres eram feitas para adornar os lares. Já seria ela uma precursora da mesma tranquilidade de gênero que Frida Kahlo, mexicana nascida anos e anos depois de sua morte, usou durante toda a sua vida?
Muito querida senhora da vice-rainha
O segundo apelido dado a Juana Inés de la Cruz veio por volta de seus dezesseis anos, quando já vivia com os tios maternos há oito anos (seu livro com trechos autobiográficos recusa e silencia sua vida com os tios, dos oito aos dezesseis anos, quando perdeu o avô e foi enviada para a Cidade do México). Por vir de uma família bem estabelecida socialmente, Juana Inés foi apresentada aos novos vice-reis que vinham da Espanha, Dom Antonio Sebastián de Toledo, e sua esposa, Dona Leonor Carreto.
A vice-rainha adorou a jovem, e imediatamente a acolheu na corte, o que lhe rendeu seu novo título: Muito querida senhora da vice-rainha.
Naquela época, a Cidade do México funcionava como a capital da Nova-Espanha, e por isso lá se encontrava toda a corte da qual Juana Inés de la Cruz foi aceita. Mas além da corte costumeira, com membros do clero e da nobreza espanhola, a Cidade do México abrigava filósofos, poetas, matemáticos e intelectuais, e isso a fascinava ainda mais.
Juana Inés de la Cruz foi apadrinhada pela corte de forma unânime, e esse foi um ponto sobre sua personalidade e história que é impossível rejeitar, afinal, todos os anos seguintes – e cortes seguintes – a mantiveram como uma querida figura no alto círculo social.
Enquanto o vice-rei a tratava como uma figura filial estudiosa e a incentivava a aprender mais e estudar, lhe cedendo todos os intelectuais da sua corte para lhe testar seus conhecimentos, a vice-rainha, Leonor, passava horas e mais horas na sua companhia, e daí partiu seu primeiro afeto amoroso até onde as biografias podem ir. É fato que Juana Inés escreveu infinitos poemas e sonetos amorosos para Leonor, já expondo sua sexualidade de forma completamente tranquila.
Foi na corte de Dom Antonio e Dona Leonor que Juana Inés foi convencida de ingressar na vida religiosa. O padre jesuíta Antonio Núñez de Miranda a falou sobre a vida no convento, e isso a fez tomar a decisão.
Para as pessoas que creem que toda mulher quer casar e ser mãe, Juana Inés de la Cruz pode ser um terror explícito, já que ela abominava a ideia de casamento, o que a ajudou a tomar a decisão final da sua entrada para a vida religiosa.
Soror
Não foi apenas a abominação em relação ao casamento que a fez decidir pela vida religiosa. Juana Inés era uma amante das artes, em especial da literatura e da escrita, e declarou que ser freira poderia lhe permitir estudar e ler por horas sem ser interrompida.
Juana Inés de la Cruz tentou, primeiro, ser uma noviça entre as carmelitas, mas as normas eram excessivas e existia exigência ao voto de pobreza e a quase reclusão absoluta, o que não lhe agradava em nada. Foi cansada do estilo de vida delas, que Juana Inés partiu para o convento de Santa Paula da Ordem de San Jerónimo, onde as freiras tinham liberdade de visitas e dormiam em celas duplex com cozinha própria, sala de estudos e empregadas. Fora a possibilidade de manter contato com o exterior por cartas – além das visitas -, e até faziam peças de teatro, bailes e festas. O voto de pobreza também não existia por lá, o que permitia que as freiras tivessem jóias e livros, o que rendeu para Juana Inés uma biblioteca particular com uma média de mil e quinhentos livros (isso se contando por baixo).
Em 1680, com um vice-rei estipulado, Juana Inés foi encarregada (por ser sempre muito querida pela corte) de desenhar um arco para a entrada da catedral da cidade, para a chegada do novo líder político. Como arquiteta, então, Juana Inés de la Cruz desenhou um arco – que infelizmente não resistiu ao tempo -, construído de madeira e gesso, junto da escrito do Neptuno Alegórico, Oceano de Cores, Simulacro Político, texto que acompanhava o arco e presenteava os novos vice-rei e vice-rainha.
Ambos se apaixonaram pela capacidade de Juana Inés e a adotaram em seu círculo próximo, dando a ela mais uma vice-rainha para admirar e que a admirava, a senhora María Luisa Manrique de Lara y Gonzaga.
A Décima Musa
Foi com a ajuda de María Luisa Manrique de Lara y Gonzaga que Juana Inés conseguiu publicar seus dois volumes iniciais, de sua extensa obra, em Madri. Isso a tornou a primeira mulher a publicar trabalhos em língua espanhola, e assim lhe rendeu ainda mais prestígio e reconhecimento artístico. Além disso, Juana Inés foi eleita administradora do convento de San Jerónimo, e usou e abusou de esquemas de trocas de favores, além de ter certa influência política na então chamada Nova-Espanha e de adquirir contato e experiência com as ciências naturais (que era o que tanto assustava a igreja em relação às bruxas).
Quando Juana Inés foi chamada para escrever um texto crítico ao sermão do padre Antônio Vieira, ela exigiu que seu texto não fosse publicado, o que obviamente não aconteceu. Foi publicado com o texto de Juana Inés de la Cruz, uma carta assinada com o pseudônimo de Sor Fioleta de la Cruz, do próprio encomendador do texto original de Juana Inés. A verdade, nesse caso, é que ela foi envolvida em uma briga interna entre dois homens da igreja, e um deles era, inclusive, um forte adversário feminino, que chegou a alegar “que se soubesse que alguma mulher tivesse entrado em sua casa, mandaria trocar o chão que ela pisara […]”.
Graças a essa carta escrita por Juana Inés, ela foi acusada de heresia (de novo) no México, por ir contra o sermão rigoroso dado por Vieira, e na Espanha, onde o texto também chegou, foi ameaçada e recebeu uma declaração clara sobre uma possível Inquisição. Isso a fez doar seus livros e instrumentos para o arcebispo Aguiar, que vendeu os objetos e doou os lucros. Nos próximos anos de sua vida, Juana Inés de la Cruz, a então Décima Musa, reconhecida por seu espírito livre, sua sexualidade declarada e sua infinita obra como autora de poemas, peças, comédias e textos, apaixonada por literatura e filosofia, e amante da boa vida, se concentrou em apresentar a Inquisição um pedido de perdão por seus pecados e vida mundana. Também foi nessa época que ela decaiu com sua saúde mental, e seus biógrafos alegam que usou de autoflagelo.
Fênix da América
Juana Inés usou seus últimos anos de vida para se dedicar à caridade e a penitência religiosa, o que a rendeu a ideia geral entre os biógrafos de volar a la perfeccíon, por ter abandonado sua vida passada e se tornado uma quase mártir da igreja e da religião. Mas é sabido que essa nova persona que ela criou foi por pressão e imposição do alto clero, e pela Inquisição criada pela Igreja espanhola.
Falecida em abril de 1695, Juana Inés partiu desse mundo por causas naturais, mas deixou uma extensa obra, entre poemas, peças teatrais religiosas e seculares, enigmas e textos sobre musicologia. Fora sua existência como filósofa e astróloga.
Juana Inés foi homenageada, no Parque del Oeste, com uma estátua já como freira, mas com os escritos na mão. Sua luta em vida era em prol da educação feminina, o apoio para que mulheres frequentassem universidades e tivessem liberdade de escolha para além do casamento. Sua perseguição pela igreja aconteceu por suas duras críticas ao senso religioso do seu tempo, e por sua constante fama de heresia, além do envolvimento com Leonor Carreto, que mesmo não tendo sido escandaloso no seu tempo, gerou repercussão suficiente para sobreviver aos tempos e trazer conhecimento de seus biógrafos e do grande público que busca sobre sua vida e trajetória.
Em sua obra teatral, Juana Inés enaltecia as mulheres silenciosas com o dom da compreensão e do conhecimento, ridicularizava homens movidos ao desejo constante de conquistar mulheres por sua aparência e interferia no discurso de que homens poderiam atrair mulheres belas e depois as descartar quando se cansassem delas. Juana Inés foi uma forte apaixonada pela igualdade de gêneros, e apesar de seu tempo, nunca escondeu sua afinidade amorosa por mulheres, mesmo que sua grande obra mais romântica tenha a ver com a ausência (ser lésbica em 1600, no México, era ainda mais terrível do que ser LGBTQIA+ nos dias de hoje).
Por ser considerada criolla, sabia da diferença feita entre os povos nativos e os negros, e por isso usou parte de seu discurso para enaltecer a igualdade racial também, enquanto defendia todos os tipos de existência.
O apelido Fênix da América veio do seu triunfo em sempre se reerguer dentro de suas possibilidades, inclusive sua aparente abdicação da vida mundana em detrimento da fé. Ela era resiliente e transpunha as vicissitudes com cuidado e adoração, sempre se mantendo fiel ao que acreditava. Juana Inés de la Cruz era uma fênix em eterno queimar e renascer.
O vôo da Fênix
Apesar de o termo feminista ter sido criado muito depois de Juana Inés de la Cruz, sua nomeação nesse círculo social não pode ser negado, tal como seu papel de representatividade na comunidade LGBTQIA+, graças a todas as suas cartas trocadas com Leonor e María Luisa.
Enaltecendo a existência de Juana Inés, além de seus escritos que sobreviveram, encontramos a série Juana Inés, na Netflix, que resume de forma ficcional e documental a vida da escritora, e temos acesso ao livro Sor Juana Inés de la Cruz ou As Armadilhas da Fé, de Octavio Paz, que mistura biografia, história, antropologia e crítica literária.
O Latinizei de hoje foi mais que especial, e esperamos você, lá nas nossas redes sociais – Twitter, Insta e Face -, para conversar sobre essa figura histórica tão marcante.
*Crédito da foto de destaque: Divulgação