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Herdeiras do Mar
Foto: reprodução/BBC

Resenha | Herdeiras do Mar: um relato brutal de dor, sacrifício e sobrevivência que ecoa por gerações

Uma homenagem às vozes silenciadas pela guerra, às mulheres esquecidas pela História e à coragem de lembrar quando o mundo prefere esquecer

Ler Herdeiras do Mar (2020), de Mary Lynn Bracht, não é uma experiência simples. É um mergulho profundo e doloroso em um dos capítulos mais sombrios da História Moderna – uma história de silêncio, de injustiça, de dor enterrada sob as camadas da vergonha e do esquecimento. Este não é um livro para entreter. É um livro para despertar. Para ferir. Para fazer sangrar junto.

A autora nos conduz à Coreia ocupada pelo Japão durante a Segunda Guerra Mundial, um período marcado por violência, opressão e apagamento cultural. Mas o que ela faz vai além de um registro histórico ou de uma narrativa de guerra: ela dá voz às mulheres que foram silenciadas por décadas. Vozes como a de Hana, uma jovem haenyeo da ilha de Jeju.

As haenyeos são mergulhadoras tradicionais, mulheres fortes e resilientes que, por gerações, sustentaram suas famílias mergulhando em águas geladas para coletar frutos do mar – uma profissão árdua, perigosa, mas também símbolo de autonomia feminina em uma sociedade patriarcal. 

Herdeiras do Mar
Foto: reprodução/The Korea Herold

Hana é uma dessas mulheres. Mas sua liberdade e sua coragem são esmagadas em um único instante, quando, num ato desesperado de amor, ela se entrega ao exército japonês para salvar sua irmã mais nova, Emi.

É aí que somos apresentados a uma das realidades mais brutais já impostas a mulheres na história: a das mulheres de conforto. Esse termo, tão eufemístico quanto cruel, foi usado para designar as milhares de meninas e mulheres – muitas delas coreanas – sequestradas e forçadas à escravidão sexual pelo exército japonês durante a guerra. 

Por trás dessa expressão, escondem-se gritos calados, corpos violentados e vidas destruídas. E Mary Lynn Bracht se recusa a adoçar essa realidade. Ela a despe, com toda a sua crueza e indignidade.

A dor de Hana é descrita com uma honestidade visceral. Não há romantização da violência, não há concessão ao conforto do leitor. Há apenas a verdade nua e insuportável de uma menina transformada em objeto, usada e descartada. A cada página, a sensação é de impotência, de sufocamento. Como aceitar que isso aconteceu? Como aceitar que tantas outras viveram o mesmo destino – e que o mundo as esqueceu?

Herdeiras do Mar
Foto: reprodução/BBC

Enquanto acompanhamos Hana em seu inferno pessoal, também somos levados à história de Emi, décadas depois. Agora idosa, vivendo em uma Coreia que tenta apagar os rastros do seu passado, Emi é o retrato de uma dor que nunca cicatrizou. 

Ela carrega em si o peso da ausência da irmã, a culpa pela sobrevivência, o fardo de uma história interrompida pelo sacrifício alheio. Sua vida é marcada pelo silêncio – não o silêncio da paz, mas o da repressão. O silêncio de quem nunca teve o direito de gritar.

Herdeiras do Mar é um grito. Um clamor por justiça. Uma denúncia contra o esquecimento. Mary Lynn Bracht não apenas narra uma história comovente sobre duas irmãs separadas pela guerra – ela resgata memórias enterradas e escancara as feridas de um trauma coletivo que ainda pulsa no presente. 

As cicatrizes de Hana e Emi não pertencem apenas a elas; pertencem a milhares de mulheres coreanas que sofreram o mesmo destino e que, por muito tempo, foram ignoradas, desacreditadas e silenciadas pela própria sociedade.

Este é um livro difícil. Doloroso. Incômodo. Mas absolutamente necessário. Ele obriga o leitor a encarar de frente a violência, a desumanização, o machismo institucionalizado e a hipocrisia dos discursos que tentam enterrar a dor em nome do progresso. É impossível sair ileso dessa leitura. E nem deveríamos. Há verdades que precisam doer – porque só assim, talvez, comecem a ser reparadas.

Se você busca uma história de superação suave, de reconciliação tranquila, talvez esse livro não seja para você. Mas, se tiver coragem de atravessar esse mar revolto, vai encontrar, nas entrelinhas, uma força devastadora – não apenas a força dessas mulheres que sobreviveram ao inimaginável, mas a força da memória, da verdade e da resistência. E, sobretudo, a certeza de que algumas histórias não podem mais ser apagadas.

 

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Texto revisado por Bells Pontes

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