Como o mercado dos Estados Unidos está engolindo identidades culturais e transformando artistas globais em produtos genéricos
A música sempre foi um reflexo da cultura de onde ela nasce. Das batidas tradicionais da África às influências do samba no Brasil, passando pelo pop sul-coreano que domina o mundo hoje, a música tem o poder de carregar em si histórias, valores e identidades. Mas, em um mercado musical globalizado, onde o sucesso parece depender de conquistar o público norte-americano, artistas de várias partes do mundo estão se dobrando às regras dos Estados Unidos. E, com isso, não só eles perdem parte de sua autenticidade, mas nós, como público, também perdemos a chance de experimentar algo verdadeiramente novo e diverso.
O mercado americano é o novo Padrão Ouro? Spoiler: não deveria ser
A obsessão por entrar no mercado americano não é novidade. Desde sempre, alcançar sucesso nos Estados Unidos tem sido visto como o equivalente a “ter chegado lá”, como se esse fosse o ápice do reconhecimento artístico. E é inegável que estamos falando de um mercado gigantesco, com um poder econômico impressionante e uma influência cultural que alcança praticamente todos os cantos do planeta.
Filmes, músicas, moda, tecnologia — tudo o que sai dos EUA parece ter um peso maior, uma espécie de legitimidade automática que outros mercados, mesmo relevantes, dificilmente conseguem alcançar. Mas será que precisamos continuar alimentando essa narrativa? Será que a busca pelo American Dream artístico não tem um custo alto demais?
O problema de enxergar o mercado americano como um Padrão Ouro está no molde imposto por essa ideia. Não é apenas sobre querer chegar lá, mas sobre as renúncias necessárias para que isso aconteça. Para artistas internacionais, essa conquista geralmente vem acompanhada de uma série de ajustes que vão muito além do natural.
Se você é um artista latino, por exemplo, é quase inevitável sentir a pressão para cantar em inglês, como se sua língua materna não fosse suficiente para conquistar audiências globais. Músicos europeus enfrentam algo semelhante, muitas vezes precisando abandonar elementos culturais únicos de suas tradições em favor de uma sonoridade genérica e comercial, que se encaixe nos padrões americanos de pop ou rock.
Artistas asiáticos, embora tenham conquistado maior visibilidade nos últimos anos, ainda precisam trabalhar com estratégias calculadas para se alinhar às expectativas do mercado ocidental, moldando suas produções, suas letras e até sua estética para atender aos gostos americanos.
O resultado disso é uma padronização perigosa, que muitas vezes sufoca a autenticidade e a inovação cultural. Em vez de expandir o horizonte artístico global, essa busca por aceitação no mercado americano pode restringir a diversidade, transformando a arte em um produto homogêneo feito para agradar a um único público dominante. Não é raro vermos artistas que, ao tentar se adaptar a esse padrão, acabam perdendo a essência que os torna únicos em seus mercados de origem.
E mais preocupante ainda é o fato de que essa adaptação não é uma escolha criativa, mas uma exigência da indústria, que prioriza o lucro e a familiaridade em vez de correr riscos com o novo e o diferente. Essa dinâmica não só reduz as possibilidades de inovação cultural, mas também reforça uma hegemonia americana que, no longo prazo, empobrece a arte enquanto ferramenta de expressão universal.
Måneskin e o preço do sucesso global
Pegue o exemplo de Måneskin. A banda italiana explodiu no Eurovision 2021 com Zitti e Buoni, uma música carregada de identidade, cantada em italiano e cheia de atitude europeia. Eles eram frescos, diferentes, e isso fez o mundo inteiro prestar atenção. Só que, ao buscar consolidar esse sucesso global — leia-se americano —, a banda passou por uma transformação evidente.
Agora, grande parte de suas músicas são em inglês, o visual parece mais uma releitura estilizada do glam rock americano, e o som perdeu um pouco daquela ousadia que fez deles uma sensação inicial. Além disso, o vocalista Damiano David, se lançou atualmente como uma versão fajuta de Harry Styles, mudando completamente o seu estilo e o de sua música.
Será que precisamos de mais uma banda de rock em inglês? Ou será que o mundo teria mais a ganhar se Måneskin continuasse a representar a efervescência cultural da Itália? E isso não é uma crítica à escolha deles, mas à necessidade imposta pela indústria: se você quer ser grande, precisa soar universal, e o universal, nesse caso, é apenas um sinônimo para americano.
A fórmula do sucesso mata a diversidade!
Essa americanização, no fundo, é uma fórmula industrial. As gravadoras e os executivos acreditam que, para vender um artista, é preciso torná-lo compreensível e acessível ao público dos Estados Unidos. Isso significa limpar sotaques, mudar línguas e transformar a sonoridade em algo que não incomode ou exija esforço de quem escuta.
O resultado? Músicas que poderiam trazer novas perspectivas acabam sendo encaixadas em padrões previsíveis. Artistas que têm tudo para serem inovadores e desafiadores, muitas vezes, soam genéricos. O público fica preso em um ciclo de consumir versões diferentes do mesmo produto, enquanto verdadeiras revoluções culturais são limitadas a nichos ou esquecidas.
O preço de trocar a autenticidade pelo mainstream
Mas o que acontece quando artistas trocam autenticidade por mainstream? Eles podem ganhar números — streams, prêmios, seguidores. Mas perdem algo que nenhum gráfico do Spotify pode medir: a conexão real com suas próprias raízes e com públicos que buscam autenticidade.
Rosalía, por exemplo, é frequentemente celebrada por misturar flamenco com pop e reggaeton, mas mesmo ela já foi criticada por abraçar um som mais genérico em suas tentativas de alcançar um público maior.
No entanto, artistas que insistem em manter suas características únicas, como BTS ao cantar majoritariamente em coreano mesmo com um público global, mostram que é possível atingir um sucesso gigante sem abandonar quem você é. Ainda assim, a pressão está sempre ali.
O problema vai além dos artistas: é também nosso!
A americanização não é só culpa da indústria. Nós, como público, temos uma parcela de responsabilidade. Quantas vezes olhamos para artistas estrangeiros esperando que eles se encaixem nas nossas expectativas em vez de nos abrirmos para o que eles têm a oferecer? Aceitamos músicas em outras línguas, mas só quando se tornam virais no TikTok. Celebramos a diversidade, mas consumimos apenas o que é embalado e vendido de forma confortável.
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Enquanto público, precisamos parar de exigir que a música internacional seja traduzida — literalmente ou não — para que a gente possa entendê-la. Parte da magia da música é justamente ser um portal para outras culturas, para outros mundos.
É hora de redefinir sucesso e quebrar o monopólio cultural
O sucesso global não deveria depender de agradar um único mercado. Chegou a hora de redefinir o que significa ser um artista de impacto mundial. Chegou a hora de derrubar a ideia de que o mercado americano é o único que importa.
Se quisermos um futuro musical que realmente reflita a pluralidade do mundo, precisamos apoiar artistas que se recusam a apagar suas raízes. Precisamos consumir músicas em outros idiomas sem achar que elas precisam de uma versão em inglês para funcionarem. E, acima de tudo, precisamos valorizar a autenticidade como o verdadeiro diferencial em um mundo onde o genérico está sempre na moda.
A música internacional tem o poder de conectar o mundo. Mas, para isso, precisa ser verdadeira — não uma sombra de um molde americano.
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Texto revisado por Kalylle Isse