Latinizei | Clarice Lispector: as faces da ucraniana, indizível e centenária

No dia 10 de dezembro de 2021, Clarice Lispector completaria 101 anos e, sendo indispensável e insubstituível para a literatura mundial, conquistou espaço no Latinizei

ALERTA DE GATILHO: VIOLÊNCIA SEXUAL/ISTS/ANTISSEMITISMO/DEPRESSÃO

Estamos dentro de um apocalipse emocional nesses dois últimos anos, vivendo de sentimentos que não sabemos decifrar e dores que não podemos nomear, e como pessoas feridas: sentimos. Seria impossível sentir alguma coisa sem nome e não nos lembrarmos de Clarice Lispector, que foi escritora, jornalista e, antes de tudo isso, sentimentalista.

Essa mulher, que em breve completaria 101 anos de idade, foi alguém de alma intensa e olhar misterioso, e que roubou nossos corações ainda no berço – ou já maduros, caso você que está lendo isso seja uma alma mais antiga.

Clarice Lispector foi um trovão seco em meio a um mundo com chuviscos de verão e, inevitavelmente, estaria aqui no Latinizei em algum momento, colaborando com a nossa galeria de mulheres memoráveis.

Hoje abrimos as cortinas do palco para Clarice Lispector, a mulher que foi tudo, inclusive a matriz das escritoras brasileiras.

Nascida para salvar

Foto: divulgação

Nascida em 1920, na Ucrânia, Clarice Lispector poderia ser vetada no contexto intenso do Latinizei, que se propõe a reunir e experienciar mulheres latinas de uma forma crua, com base em suas histórias de vida e artes fortes. No entanto, por ser Clarice Lispector, ela é indispensável para esse espaço tão nosso: feminino e latino.

A escritora deu as caras no mundo, pela primeira vez, em uma pequena cidade ucraniana, mas não foi em paz familiar. Como você deve ter imaginado pelas contas históricas que fez, 1920 era um ano de guerras, fome e perseguições

Para entender como a criança nascida Chaya Pinkhasovna Lispector se tornou Clarice, temos que compreender que a perseguição aos judeus não é um crime exclusivo do antissemitismo nazista. E, nas terras do inverno, a família Lispector fugia desse sentimento carregado de rancor infundado contra o povo judeu, e tentava alcançar a liberdade.

Sua mãe, tendo sido violada durante as diversas invasões que aconteceram ao redor do mundo nos anos da Primeira Guerra Mundial, e tendo contraído sífilis desse abuso, deu à luz a Chaya, a terceira filha da família. Ao nascer, a menina Chaya, ganhou o peso de ser a criança que salvaria a vida de sua mãe. Já que, naquela época, o Leste Europeu alimentava o mito de que uma criança nascida de uma mãe infectada por uma doença venérea, seria capaz de salvar a vida da genitora. Obviamente, sabemos que isso não é possível, e depois de tanto fugirem e de terem passado pela Moldávia e pela Romênia, e finalmente se estabelecerem em Maceió, aqui no Brasil, a mãe de Clarice Lispector faleceu quando a filha caçula estava com dez anos.

Eis a primeira culpa que Clarice tomou para seus ombros: a origem carregada de dor e a perda da mãe por não ser a criança que a salvou da doença.

Em solo brasileiro e com esse enredo, já nascia a nossa Clarice Lispector, que seguia a ordem da família e era batizada novamente, abandonando o nome de berço, e se tornando Clarice.

Mais rica do que os ricos

Foto: divulgação

Vinda de uma origem humilde, o pai de Clarice Lispector batalhava todos os dias para poder sustentar a família e, quando chegou ao Rio de Janeiro, manteve vivo o sonho de mostrar ao mundo o grande valor das filhas, e com isso as incentivou a continuar seus estudos muito além do recomendado às mulheres naquele tempo.

É importante pensar que esse era o meio do século XX, com guerras assolando o mundo, ditaduras crescendo (em especial na América Latina), o antissemitismo sendo bem visto e a posição das mulheres ainda sendo tida como desimportante perante a sociedade. Mas Clarice e suas irmãs foram longe e ultrapassaram as barreiras financeiras, o que fez com que Clarice Lispector entrasse para a Faculdade de Direito da Universidade do Brasil.

O peso de ser Clarice Lispector dobrou sobre seus ombros, já que nesse momento de sua vida, a jovem Clarice se viu entre uma sociedade de classe mais alta que a sua, completamente elitista, branca (não havia nenhum outro judeu entre os alunos) e masculina (só haviam três mulheres em toda a faculdade).

Ter feito direito foi uma sombra em sua vida, porque ninguém pensa em Clarice como uma mulher das leis ‒ mesmo que provavelmente ela teria sido uma advogada imbatível. Os passos de Lispector no Rio de Janeiro pendiam muito mais para ser uma escritora do que uma senhora do direito.

Leitora voraz, Clarice Lispector conheceu e leu autores brasileiros e estrangeiros, como Machado de Assis e Fiódor Dostoiévski, assim como a brilhante romancista e tradutora brasileira, Rachel de Queiroz.

Nesse período, Clarice já corria entre jornais locais, apresentando e exibindo sua genialidade, ainda de forma tímida. Foi apenas em maio de 1940, com 19 anos, que ela começou a ganhar a verdadeira notoriedade que havia nascido para ter.

O Triunfo foi sua primeira obra conhecida, e emoldurou a morte prematura do pai, três meses depois da publicação.

Sendo órfã aos 20 anos, Clarice Lispector se viu ainda mais solitária, mas seguiu escrevendo. Com 21 anos, publicou Perto do Coração Selvagem, a obra que lhe rendeu o prêmio Graça Aranha de melhor romance.

Solidão feminina e latina

Foto: divulgação

Ainda como estudante de direito, Clarice Lispector conheceu o católico e futuro diplomata  Maury Gurgel Valente, com quem se casou em 1943. Temos que destacar aqui, como uma pequena nota no texto que, naquela época, o catolicismo não era usual entre o povo brasileiro.

Sendo esposa, Clarice partiu do Brasil com o marido para a Europa e se instalou em Nápoles, em 1944, onde se voluntariou para ser ajudante hospitalar. Por lá se responsabilizou em ajudar os brasileiros que lutavam na Segunda Guerra Mundial e chegavam feridos.

De Nápoles, Clarice e Maury seguiram para o resto da Europa, dando idas e vindas entre a Inglaterra e a França, e em 1946 ela publicou seu segundo romance: O Lustre. Com uma vida de cinco anos viajando sem parar entre os dois países, Clarice Lispector era um destaque brasileiro que pisava e bebia das inspirações parisienses, e refletia sua arte de forma única, mesmo em um ambiente tão marcado pelo peso de artistas fortes, como a Geração Perdida, que fez história na cultura mundial quando viviam uma vida boêmia na cidade luz, vinte anos antes. Finalmente se instalando em Berna (cidade Suíça), Clarice Lispector deu à luz ao filho Pedro.

Mas ela não se sentia completa longe do Brasil, e o papel de esposa de diplomata, silenciosa e escritora não lhe deixava feliz. A saudade de casa, da família e da sua origem étnica, a puxavam de volta para o nosso espaço tão tropical e acolhedor, e como mulher latina que era, sendo presa em um casamento que amordaçava seu amor pela escrita (vale lembrar que apesar de escrever nesse período e de ter a facilidade de não precisar trabalhar em nada mais porque seu marido a tinha colocado em uma posição social confortável, Clarice não exercia o jornalismo, que era sua paixão, e não publicava nada, além do seu romance de 1946), Clarice Lispector começou a ter sintomas depressivos mais intensos.

Na América errada e na América certa

Foto: divulgação

Já dedicada a escrever sobre o cotidiano feminino, a fúria do sentir e abordando temas como maternidade e existência feminina, usando da influência judaica do pai e alimentando sua sensação de não pertencimento, Clarice Lispector foi desenvolvendo um jeito único de escrever e de refletir sentimentos.

Então, pronta para descobrir novas faces de si mesma, Clarice se mudou com a família para os Estados Unidos, no início dos anos 1950. Nessa época, Clarice Lispector teve a publicação de A Cidade Sitiada (1949) e Alguns Contos (1952), que reunia uma coletânea de contos, e ainda do lado errado da bússola das Américas, Clarice dá à luz ao seu segundo filho, Paulo, em 1953.

No ano seguinte, seu primeiro romance (Perto do Coração Selvagem) foi traduzido para o francês pela primeira vez, e ainda teve a publicação com uma arte de Henri Matisse na capa.

E foi do lado errado das Américas que, em 1959, Clarice Lispector se divorciou do marido e finalmente voltou ao Brasil, indo direto ao Rio de Janeiro. De volta ao Rio, ela retomou sua paixão pelo jornalismo, e usou disso como sua fonte de sustento para ser independente.

A prova de que o Brasil era a sua América certa veio com o crescimento massivo de sua obra nos anos que se seguiram. Em 1960 ela publicou a obra Laços de Família, que foi abraçado e abençoado pela crítica, e que reúne contos cheios de acidez pessoal e de escrita intensa. No ano seguinte, Clarice Lispector voltou a brilhar, com o romance A Maçã no Escuro, que foi tão bem recebido que se tornou uma popular peça de teatro, daquele tipo que orgulharia o lado militante pelas artes que Pagu tinha.

Em 1963 veio o seu ápice na escrita, com o romance A Paixão Segundo G.H., que fala sobre como o cotidiano banal pode ser revolucionário, mesmo que seja repulsivo o momento que inspirou tal anarquia pessoal. E seria para menos? Esse livro relaciona a capacidade de uma barata em mudar os rumos de uma alma feminina.

O Brasil era a América certa de Clarice Lispector, e a mais óbvia paixão da autora pelo nosso pequeno mundo colorido se mostrou vivo nos seus artigos para o Jornal do Brasil, no fim dos anos 1960, quando escrevia sobre si de forma íntima e relatava sua existência no cotidiano da vida brasileira, mas sempre com delicadeza e com distanciamento de temas polêmicos. Foi nesse momento de sua carreira que seu nome ficou mais popular, apesar de seu reconhecimento como autora já ser mundial.

Um cigarro aceso

Foto: divulgação

Em 1966, por um acidente do destino, Clarice Lispector pegou no sono com um cigarro aceso, e as consequências foram devastadoras. Seu quarto ficou completamente destruído e a própria Clarice sofreu queimaduras seríssimas, sendo internada e tratada, mas ficando com permanentes manchas em grande parte de seu corpo, graças às diversas queimaduras que teve. Sua mão direita quase foi amputada nos dias que se seguiram, e por conta disso ficou permanentemente com a mobilidade e rapidez da mão direita afetada.

Ter passado por mais esse trauma fez com que Clarice Lispector se tornasse ainda mais solene e reclusa, afinal o acidente aumentou suas crises de ansiedade e intensificou sua tendência depressiva, causando ainda mais peso na sua escrita já intensa.

Vale lembrar que esse foi seu último grande acidente do destino antes das cortinas se fecharem, mas seu último livro ainda não tinha sido publicado.

O aclamado A Hora da Estrela, de 1977, veio no momento exato de sua vida, depois de anos (entre 1960 e 1970) escrevendo livros infantis e traduzindo obras estrangeiras, além de palestras que deu em universidades brasileiras. Apesar do impacto que a obra teve ao ser publicada, não teve nenhum glamour na sua escrita. A Hora da Estrela foi produzido em versos de cheques, papéis soltos e maços de cigarro, e faz uma análise ‒ provavelmente autobiográfica, como toda a sua obra ‒ do próprio passado da autora, quando migrou do Nordeste para o Rio de Janeiro.

Em 9 de dezembro de 1977, literalmente na véspera de seu aniversário de 57 anos, Clarice Lispector fechou as cortinas do seu grande palco, por culpa de um câncer, enquanto estava internada.

Seu enterro foi mais um mito da sua trajetória, já que Clarice Lispector foi enterrada com tradicionalismo ortodoxo judaico, envolvida em linho branco, e com o nome de batismo na lápide.

Ao lembrar de Lispector

Foto: divulgação

Clarice Lispector foi multifacetada, como autora, como mulher imigrante (tanto quando chegou no Brasil, e também depois como brasileira que não se encaixava em outras terras), como figura feminina dentro do judaísmo, como representante das consequências de uma saúde mental instável e como mulher solitária em seu casamento. Ela foi o palco de grandes tragédias, mas também foi a criação de grandes histórias, e todas nós, mulheres brasileiras, artistas, escritoras, jornalistas, mães e religiosas (seja na fé que for), temos uma pitada lispectoriana em nós. E como não ter, pergunto a você?

No seu pós vida temos que ressaltar o impacto de sua capacidade como linguista, já que falava português, inglês, francês e iídiche (língua judaica, que mistura idiomas).

Também precisamos lembrar da razão de Clarice Lispector ter se tornado uma aluna de direito. Apesar de não ter sido a advogada que poderia ser, todos a sua volta entenderam a escolha na época, afinal ela era reconhecida, desde a infância, por ser uma questionadora dos limites de direitos. Além disso, o trauma da memória emocional do pai ter sido preso durante a perseguição antissemita que sofreram no país natal, a transformou em uma mulher que queria revolucionar o sistema presidiário feminino.

Reconhecida como a autora do indizível, Clarice Lispector presenteia o leitor, em cada uma de suas obras, com observações profundas de momentos corriqueiros, dando olhos infantis e curiosos, que vivenciam experiências pela primeira vez, a adultos catárticos.

Se faltam palavras para descrever a Clarice mãe, a foto inicial do nosso texto te abraça com a delicadeza de ser uma mulher apaixonada pelos seus filhos, mas de silenciá-los do público pois não amava a ideia de autora e mãe se misturando e deixando frestas para invasão curiosa dos leitores. Em tempos de Instagram, Clarice Lispector provavelmente seria reclusa virtual, mas foi, sem dúvida alguma, a grande precursora da mãe que coloca o computador (a máquina de escrever, em seu tempo) no colo, na sala, junto de suas crianças, para admirar sua força e leveza, enquanto os deixa interromper suas fúrias de escrita.

Sem saber como nos despedir da memória que é ler ela a cada novo ciclo e nova obra que descobrimos, entendemos que Clarice Lispector não foi apenas singular: ela foi um movimento artístico inteiro.

O nosso Latinizei não precisa terminar por aqui! Nós estamos lá nas redes sociais – Twitter, Insta e Face -, ansiosas para conversar ainda mais sobre essa figura monumental e indispensável. Vem papear com a gente!

*Crédito da foto de destaque: divulgação

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